FelipeFFalcão

Contos versos e poesias

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28

 

A carruagem deteve-se diante da imponente mansão dos Rufinos ao despontar da aurora. Plínio desceu com elegância, alongou os membros ainda entorpecidos pelo trajeto e ascendeu os degraus que conduziam ao suntuoso vestíbulo de entrada. Antes de cruzar o umbral, deteve-se por um instante, voltando-se para contemplar o vale à sua frente, cuja paisagem, sob a luz tímida do amanhecer, evocava-lhe uma melancolia contemplativa. O ranger da porta atrás de si interrompeu-lhe o devaneio.

 

— Bom dia, meu senhor — saudou Demétrius, o mordomo, com uma reverência discreta. — Parece que ausentar-se à noite tornou-se um hábito recorrente.

 

— Bom dia, Demétrius — replicou Plínio com serenidade. — É inevitável. Grandes responsabilidades demandam novas rotinas. — Estalou os dedos, como se buscasse ordenar os pensamentos. — Aliás, a propósito de responsabilidades: o que pode me dizer sobre a situação na vila dos empregados?

 

— Pois não, senhor. Após vossa partida, ontem, dirigi-me àquela localidade sem demora. Empenhei-me por horas na investigação e logrei identificar a raiz do problema. O administrador, Jacob, vinha se apropriando indevidamente dos recursos destinados aos trabalhadores, utilizando-os para fins escusos. Tomei a liberdade de dispensá-lo imediatamente de suas funções. Além disso, organizei um mutirão, que terá início hoje, para a reparação e reconstrução das habitações em estado crítico.

 

— Excelente iniciativa, Demétrius. No entanto, para dar continuidade a esse projeto, será indispensável o aval financeiro do Dr. Ferreira. Solicitei-lhe, ontem à noite, um parecer detalhado sobre as verbas necessárias à sua execução.

 

— De fato, senhor. O mensageiro do doutor entregou-me um relatório à meia-noite. Entretanto, permito-me aconselhá-lo a tomar precauções: Jacob não recebeu bem sua destituição e insinuou que não deixará as coisas como estão.

 

— Não se preocupe, Demétrius. Cuidarei disso pessoalmente. Agora, tomarei meu desjejum. Enquanto isso, comunique ao Dr. Ferreira que desejo encontrá-lo às quatorze horas — ou melhor, nós iremos encontrá-lo.

 

— Nós, senhor...? — indagou Demétrius, intrigado.

 

— Eu e você, Demétrius.

 

— Sim, senhor. Imediatamente, senhor. Sua mensagem será transmitida sem demora.

 

— Ah, e mande chamar Everaldo. Assim que ele chegar, quero vê-lo, juntamente com Januária, no escritório. Após o desjejum, falarei com ambos. Desejo que esteja presente.

 

— Sim, senhor.

 

***

 

Enquanto o mordomo se retirava com passo firme, Plínio dirigiu-se à sala de desjejum. O aroma do café recém-coado misturava-se ao leve perfume de flores silvestres que adornavam a mesa posta com esmero. Sentou-se em silêncio, servindo-se com parcimônia. Mastigava devagar, como se cada pensamento exigisse sua própria pausa.

 

Seu olhar, perdido entre as janelas abertas que davam vista ao pomar, revelava inquietude. Os ventos da mudança sopravam intensos sobre Barro Preto, e ele sabia que decisões mais árduas ainda se faziam necessárias.

 

Pouco depois, Demétrius retornou.

 

— Senhor, Everaldo já se encontra na propriedade. Encontra-se na cocheira, segundo me informaram. Já mandei chamá-lo, assim como à senhora Januária. Em instantes, estarão ambos à sua disposição no escritório.

 

— Muito bem — disse Plínio, levantando-se. — Acompanha-me, Demétrius.

 

Seguiram pelos corredores da mansão, cujas paredes ostentavam retratos de antepassados de semblante austero, como sentinelas silenciosas de uma linhagem marcada por poder e rigidez.

 

No escritório, Plínio acomodou-se em sua poltrona de couro escuro. Pediu a Demétrius que permanecesse de pé, ao seu lado. Pouco depois, Everaldo bateu à porta, seguido por Januária, com mãos trêmulas, talvez pela surpresa da convocação.

 

— Entrem, por favor — disse Plínio, com um aceno contido.

 

Ambos se aproximaram, receosos.

 

— Chamei-os aqui — começou ele — porque, nos próximos dias, iniciaremos uma série de reformas na vila dos trabalhadores. Sei que ambos são respeitados entre os seus, e é precisamente por isso que os escolhi para integrar o comitê de organização que será formado.

 

Everaldo arregalou os olhos, como quem mal podia crer no que ouvira. Januária levou a mão ao peito, hesitante.

 

— Nós, sinhô? — sussurrou ela. — Mas... nós é só vaqueiro, sinhô... e ajudante de cozinha...

 

— Justamente — replicou Plínio. — São vocês que conhecem a vila por dentro. Suas dores, suas urgências. Nenhum engenheiro formado compreenderia melhor do que quem vive e sente na pele as carências do povo.

 

Fez-se um breve silêncio, carregado de emoção.

 

— Se aceitarem — prosseguiu Plínio —, terão voz nas decisões. A partir de agora, Barro Preto não se sustentará mais sobre a ignorância dos de baixo. A justiça será nossa nova herança.

 

Januária, com os olhos marejados, fez uma reverência tímida. Everaldo, embora embargado, assentiu com firmeza.

 

— Então é isso, senhor. Tamos com vosmecê.

 

Plínio esboçou um raro sorriso. Pela primeira vez em muito tempo, sentia que o peso do nome Rufino podia se inclinar, ainda que timidamente, para a honra.

 

— Agora, tenho outro assunto... um tanto delicado a esclarecer — disse Plínio, com o semblante carregado de seriedade.

 

— Fale, meu senhor — respondeu Everaldo, com voz vacilante, desviando o olhar.

 

— Senhor Everaldo... o senhor me conhece desde menino. Eu o respeito como a um parente mais velho. Mas há algo que preciso esclarecer, e rogo que me compreenda. Não me casarei com Januária. Sei que, talvez, tenha desonrado vossa confiança, mas garanto: jamais foi minha intenção. Aquilo que houve... o beijo à beira do lago... foi um gesto precipitado, nascido da confusão entre admiração e sentimento. Foi ela quem me beijou, não o contrário.

 

— Senhor Plínio...

 

— Cale-se, Januária — interrompeu Everaldo, dirigindo-se à filha com severidade. — Prossiga, senhor Plínio.

 

— Obrigado. Como eu dizia, não desejo que vossa filha se torne objeto de escárnio ou maledicência. Por isso, a partir de hoje, ela deixará de prestar serviços aqui na casa grande. Irá com o senhor e com sua esposa para a vila dos empregados. A casa que era ocupada por Jacob será agora vossa residência. O senhor ficará encarregado da administração da vila e da venda, e ela será sua ajudante. Receberá o mesmo pagamento que tem recebido até então.

 

Fez-se um silêncio denso. Januária tremia, soluçando baixinho, o rosto oculto pelo lenço.

 

— Amanhã, partirei para a capital — continuou Plínio, com a voz firme. — E me casarei com a senhorita Margareth. Este assunto não será mais retomado entre nós.

 

Everaldo respirou fundo, absorvendo cada palavra com a resignação dos que carregam fardos antigos.

 

— Permita-me dirigir a palavra a vossa filha, senhor Everaldo — disse Plínio, voltando-se para o velho vaqueiro.

 

Este apenas curvou a cabeça em silenciosa aquiescência.

 

— Januária, você é uma jovem encantadora, bonita e de bons sentimentos. Mais cedo ou mais tarde, encontrará alguém que a ame como merece.

 

— Obrigada, senhor... — murmurou ela, lutando para conter a emoção.

 

Plínio então se voltou a Demétrius, com a autoridade de quem encerrava um capítulo.

 

— Demétrius, acompanhe-os. Providencie que a mudança deles seja feita ainda hoje para a casa que era de Jacob.

 

— Sim, meu senhor — respondeu o mordomo, com um leve aceno de cabeça.

 

Plínio permaneceu imóvel por um instante, observando os três se retirarem. O sol já incidia pelas janelas, banhando o escritório com uma luz amarela e impiedosa. Ainda havia muito a ser feito. Mas, por ora, apenas o silêncio lhe fazia companhia.

 

***

 

Plínio e Demétrius chegaram pontualmente ao renomado escritório de advocacia, conforme o horário previamente estabelecido. A secretária os recebeu com cordialidade e os conduziu à imponente sala do doutor Ferreira.

 

— Por favor, acomodem-se, senhores — convidou o advogado, indicando as cadeiras dispostas em frente à sua ampla mesa de carvalho. — Aceitariam um café, um copo d’água ou, talvez, algo mais robusto?

 

— Agradeço, doutor, mas dispenso — respondeu Plínio, com cortesia.

 

— Eu aceito, acompanhado de um copo d’água, se possível — manifestou Demétrius.

 

Com um discreto aceno de cabeça, o advogado sinalizou à assistente que providenciasse o pedido.

 

— Muito bem, jovem Plínio. Qual é o propósito desta reunião?

 

— Pois bem, doutor — começou Plínio, com firmeza —, tomei uma decisão de grande importância. Estou determinado a partir para a capital, onde pretendo permanecer por um período de seis meses, talvez até um ano. Minha intenção é concretizar um antigo sonho de meu pai. Planejo aceitar a proposta do pastor Elias e doar uma parte do terreno à igreja. Na área remanescente, desejo construir uma residência com, no mínimo, vinte quartos e, paralelamente, erguer um armazém destinado à distribuição dos produtos da fazenda.

 

— Um projeto ambicioso, senhor Plínio — comentou o advogado, entrelaçando os dedos sobre a mesa. — Contudo, minha preocupação recai sobre nossos parceiros comerciais que atuam na capital. Isso não poderia interferir em suas operações?

 

— Creio que não, doutor. Até onde sei, os referidos parceiros não destinam as mercadorias adquiridas de nós ao mercado da capital, mas sim a outras localidades. Sendo assim, o mercado local permanece desocupado.

 

— Entendido. Todavia, permito-me sugerir prudência. Empreendimentos dessa magnitude exigem recursos vultosos. Não seria sensato avançar com alguma cautela?

 

— Concordo plenamente. Contudo, já realizei os cálculos necessários. A reserva deixada por meu pai é suficiente para sustentar as despesas iniciais por ao menos seis meses. Durante minha ausência, Demétrius assumirá como meu braço direito na administração da fazenda. Além disso, gostaria de solicitar vossa ajuda na contratação de um homem de confiança para resguardar a sede da propriedade. Dispensei Jacob recentemente e receio que possa tentar causar transtornos.

 

— Não se preocupe, jovem Plínio. Tenho em mente a pessoa ideal para esse encargo — respondeu o advogado, com um sorriso discreto.

 

— Excelente, doutor. Hoje ainda cuidarei de alguns assuntos na cidade, e amanhã partirei para a capital.

 

— Fique tranquilo. Pode viajar com a certeza de que tudo estará sob controle — assegurou o advogado, voltando-se para Demétrius. — Não é mesmo, Demétrius?

 

Demétrius confirmou com um leve aceno de cabeça, em sinal de concordância.

 

Após a despedida, Plínio e seu fiel mordomo dirigiram-se ao centro da cidade para adquirir os suprimentos necessários à manutenção da fazenda. O sol já se erguia pleno no céu, e o futuro começava a tomar forma sob seus próprios passos.

 

 

P.S.: Se você ainda não leu os capítulos 27 da série de contos ENTRE A VIDA E A MORTE, corra la e confira, quem já leu disseram que és a imperdível .

 

 

 

 

 

Felipe Felix
Enviado por Felipe Felix em 20/07/2025
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