"A verdadeira nobreza não reside na linhagem, mas na compaixão que se tem pelos desvalidos.” - provérbios do interior de Minas gerais. Sec. XIX.
Plínio chegou à cidade ao cair da tarde. O céu, tingido pelos últimos matizes do crepúsculo, envolvia a praça em uma atmosfera serena, quase etérea. Ao contorná-la, seus ouvidos foram agraciados por um canto melodioso que emanava da igreja próxima. A voz, cristalina e angelical, parecia transcender o terreno, elevando-se como uma prece em forma de música. Intrigado e movido por uma súbita inspiração, dirigiu-se ao cocheiro:
— Paulo, detenha a carruagem em frente à igreja.
O cocheiro, obediente, parou o veículo. Plínio desceu com passos decididos, mas silenciosos, e aproximou-se da entrada. A porta, entreaberta, permitia-lhe uma visão parcial do interior. Ele espreitou pela fresta e viu a origem daquele cântico celestial: uma jovem, envolta em luz suave, entoava a ária sacra “Quem vai com Jesus morar”. Por instantes, ficou ali, absorto, como que enfeitiçado pela pureza daquela voz. Não se tratava de Margareth. Só então, rompendo o encanto, voltou à carruagem e ordenou que seguissem para a casa do advogado. Àquela hora, era improvável que ele ainda se encontrasse no escritório.
A residência do Dr. Ferreira erguia-se imponente na entrada sul da cidade, sobre uma colina de vegetação densa. Quando a carruagem alcançou o portão principal da propriedade, a noite já havia se estabelecido por completo. No entanto, a escuridão não era absoluta: a luz solitária de um lampião, tremulando na entrada, destacava-se como um farol discreto no meio das sombras.
Ao cruzarem a porteira, o latido agudo dos cães rompeu o silêncio, anunciando a chegada de Plínio. A carruagem deteve-se ao pé da escadaria que conduzia à porta principal, onde o mordomo da família Ferreira já aguardava, rígido e cerimonioso.
— Boa noite, Sr. Plínio — cumprimentou o mordomo, inclinando levemente a cabeça. — O que o traz à residência de meu senhor em hora tão avançada?
— Boa noite, Kássios. Trago assuntos de suma importância que não podem esperar.
— Entendo. Acompanhe-me, por favor. Aguarde nesta sala enquanto informo o Dr. Ferreira de sua presença.
Plínio assentiu e tomou assento em uma das cadeiras da sala de estar, decorada com sobriedade e bom gosto. Minutos depois, o mordomo retornou com sua costumeira discrição:
— Meu senhor encontra-se à mesa, terminando o jantar. Solicita que o senhor aguarde ou, se desejar, junte-se a ele, caso ainda não tenha se alimentado.
— Agradeço a gentileza, mas dispenso o convite. Almocei tarde e vim diretamente para cá — respondeu Plínio, com cortesia, mas sem esconder a urgência de sua visita.
— Muito bem. Permita-me oferecer-lhe, então, um licor de jenipapo, preparado na própria propriedade.
— Sou grato, mas por ora prefiro abster-me.
Kássios curvou-se ligeiramente em deferência e retirou-se, deixando Plínio a sós com seus pensamentos e com o sutil tremular da chama do lampião ao fundo da sala.
Pouco se demorou para que o Dr. Ferreira adentrasse a sala de visitas. Desta feita, despojado de sua habitual casaca, trajava apenas um colete sobre a camisa de linho. Plínio, observando-o aproximar-se, ergueu-se de pronto, em um gesto de cortesia.
— Boa noite, meu prezado Plínio — iniciou o doutor, com uma voz pausada e grave. — Que questão tão premente o traz a este humilde lar, a ponto de não admitir adiamento?
— Rogo-lhe perdão, doutor, pela intromissão abrupta e pelo desrespeito ao decoro que exige aviso prévio. Contudo, o tema que me aflige é de tal magnitude que não me seria possível aguardar o raiar do dia sem ao menos expor-lhe minhas inquietações.
— Não se preocupe, meu jovem. Não sou de censurar aqueles que buscam conselhos em momentos de angústia. Acompanhe-me à varanda; o ar lá é mais ameno, e a tranquilidade do ambiente poderá facilitar nosso colóquio.
Voltando-se para Kássios, o mordomo que discretamente circulava entre a sala de visitas e a de jantar, o doutor ordenou:
— Kássios, sirva-nos dois cálices de licor de jenipapo na varanda.
Instalados na varanda, Dr. Ferreira acomodou-se à mesa situada no canto norte do espaço, onde repousava uma pequena caixa de madeira finamente trabalhada. Abriu-a com parcimônia, retirou de seu interior um cachimbo esculpido com esmero, e, após preenchê-lo com fumo de corda, acendeu-o com uma brasa cuidadosamente mantida sobre um suporte de ferro. Somente após uma longa tragada, com os olhos semicerrados e o semblante absorto, quebrou o silêncio:
— Pois bem, Plínio. Agora, diga-me, o que o perturba de tal maneira?
— Doutor, são duas as razões que me conduziram até aqui. A primeira refere-se às condições deploráveis que observei hoje durante uma inspeção aos setores produtivos da Fazenda Barro Preto. Deparei-me com um aglomerado que me foi descrito como a vila dos trabalhadores, cuja existência, confesso, eu desconhecia até então. O senhor tem ciência desse lugar?
— Para ser franco, não tinha notícia dele até este instante — respondeu o advogado, inclinando-se levemente para a frente, intrigado. — Mas não me surpreenderia; a vastidão das terras dos Rufinos pode ocultar muito do conhecimento até dos mais atentos.
— Sem dúvida, doutor. Todavia, o que presenciei lá me revoltou profundamente. Crianças visivelmente desnutridas; anciãos padecendo em leitos rudimentares de madeira bruta; condições sanitárias praticamente inexistentes... Enfim, um cenário de desolação e miséria que clama por intervenção imediata. Determinei, sem hesitação, que todas as moradas fossem reformadas e, caso não apresentassem condições de conserto, erguidas de novo, com dignidade. Além disso, exigi que os moradores recebessem assistência médica regular.
Dr. Ferreira manteve-se em silêncio por alguns instantes, tragando lentamente o cachimbo, antes de ponderar:
— Seu ímpeto humanitário é louvável, sem dúvida, mas permito-me levantar uma questão. Não teme o senhor que tal ação possa abrir precedentes para reivindicações futuras? Pois, até onde me consta, esses trabalhadores são os mesmos antigos escravizados de seu avô, que, com a abolição, tiveram a liberdade de partir, mas optaram por ali permanecer, mediante a promessa de moradia, vestuário e sustento. Não caberia a eles, então, zelar por suas próprias condições de vida?
— Esse é precisamente o cerne do problema, doutor. Suspeito que o sustento prometido não esteja sendo provido de maneira adequada. Demétrius, o administrador da casa grande, afirmou que há um armazém abastecido mensalmente, de onde os trabalhadores retiram os mantimentos necessários. Contudo, as condições que observei indicam o contrário.
— E qual seria, então, o meu papel nessa questão?
— Gostaria que o senhor realizasse um levantamento minucioso das receitas e despesas da fazenda, para verificarmos a viabilidade financeira dessas reformas e melhorias.
— Considere essa parte resolvida. Que outra questão deseja trazer à baila, meu caro?
— Este é mais intrincado. Possuímos, na capital, uma propriedade inativa. Meu pai idealizara construir ali uma residência para transferir nossa família à cidade, mas, com sua internação no hospício e o falecimento de minha mãe, o projeto foi abandonado. Recentemente, o pastor Elias apresentou-me uma proposta: doar parte do terreno para a construção de uma igreja e de um asilo destinado aos necessitados. Em contrapartida, ele compromete-se a adquirir exclusivamente da Fazenda Barro Preto os suprimentos necessários para a construção e a manutenção do projeto, sob um contrato vitalício.
— A proposta é interessante, ainda que, em curto prazo, pareça beneficiar mais ao pastor do que a vós. Não obstante, cabe a vós pesar os prós e contras e decidir.
— Agradeço-lhe, doutor. Já vislumbro um caminho a seguir. Solicito, então, que prepare a documentação pertinente. Na próxima semana, pretendo ir à capital; aproveitarei para visitar meu pai.
— Providenciarei tudo o que for necessário. Até quinta-feira, terei os documentos prontos para vossa apreciação antes de submetê-los às demais partes interessadas.
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