FelipeFFalcão

Contos versos e poesias

Textos


A noite já ia alta quando Plínio despediu-se com cortesia dos presentes. Atravessou o alpendre da casa pastoral sentindo o peso suave da brisa noturna em seu rosto. Montou em Relâmpago com destreza e tomou o caminho de volta à Fazenda Barro Preto. A lua, redonda e fulgurante, guiava-lhe o trilho como um candeeiro celeste, lançando sombras longas sobre o chão de terra batida.

 

Durante o trajeto, os pensamentos do moço eram como cavalos bravios, difíceis de domar. A imagem de Margareth, de modos finos e fala doce, contrapunha-se à de Januária, com sua beleza morena, de sangue quente e olhos que pediam, ordenavam e feriam ao mesmo tempo. Sentia-se dividido, como se o mundo, em sua extensão, se partisse entre dois caminhos que não podiam convergir.

 

Ao alcançar os limites da fazenda, diminuiu o galope. O casarão dormia em silêncio, exceto por uma luz acesa na lateral — a lamparina da cozinha, que dona Cidália, a governanta, por hábito, mantinha acesa para os da casa que chegassem tarde. Apeou-se com discrição e amarrou Relâmpago junto ao mourão. Pensava em entrar sem alarde, alcançar seu quarto, e lançar-se na cama sem mais tormentos.

 

Mas ao passar pelo terreiro, um vulto surgiu à sua esquerda.

 

— Pensava que não voltava mais esta noite, sinhô Plínio — disse uma voz baixa, de mulher.

 

Ele estacou. A poucos passos, sob a sombra de um mamoeiro, Januária estava de pé, de braços cruzados e olhos cravados nele.

 

— Que faz aqui fora a esta hora, menina? — murmurou ele, surpreso e temeroso.

 

— Esperei. Queria ver vosmecê, só isso — respondeu ela, com a voz quase inaudível. — Mas se não quer, eu vou-me já...

 

Plínio olhou em volta, o coração aos pulos. A noite tinha ouvidos. A fazenda respirava pelos cantos. Um gesto imprudente, e tudo poderia ruir.

 

— Não é prudente, Januária... — disse ele, recuando um passo. — Vosso pai...

 

— Vosmecê acha que não sei? — cortou ela, firme, porém sem altivez. — Meu pai me bate se souber. Vosmecê se esconde se lembrar. Mas eu... eu não me arrependo. Aquele beijo não foi só meu. Nem foi sonho.

 

Plínio baixou os olhos. As palavras da moça calavam fundo, como setas certeiras. Ainda assim, cada fibra de seu corpo lhe gritava cautela.

 

— Amanhã, à luz do sol, não quero que penseis de mim coisa errada — disse ele por fim. — Eu sou moço, sim, mas não sou vil. Não hei de vos desonrar.

 

Januária sorriu de canto, e por um instante, seus olhos brilharam como quem compreende mais do que diz.

 

— Pois então que Deus veja vossa intenção, sinhô. Porque o que a gente sente... não se desdiz.

 

E antes que ele respondesse, ela virou-se e sumiu entre os fundos da casa, com passos ligeiros e leves como os de uma reza ao vento.

 

Plínio permaneceu imóvel, o peito arfando. A noite retomara seu silêncio. Mas dentro dele, o coração não cessava de lutar — entre a promessa do que poderia ser e o medo daquilo que jamais deveria ter começado.

 

***

 

O sol mal rompera no horizonte quando Plínio despertou. O sono fora breve e tumultuado, povoado de rostos, promessas e culpas. Espreguiçou-se devagar, deixando-se ficar por instantes deitado, com os olhos fitos no forro de madeira do quarto, como se ali pudesse decifrar o rumo que sua vida tomaria.

 

Após vestir-se com simplicidade, desceu. Ao passar pelo corredor, ouviu o tinido dos talheres vindo da copa. Entrou com discrição.

 

Tia Mercedes, já posta à mesa, tomava seu café com leite morno, vestida em sua habitual bata azul e com os cabelos recolhidos num coque firme, sem vaidade, mas com dignidade.

 

— Dormiu bem, meu filho? — indagou, sem desviar os olhos da xícara.

 

— Um tanto inquieto, confesso — respondeu ele, sentando-se.

 

— A inquietação costuma visitar os jovens quando o coração começa a decidir por si mesmo — replicou ela, calmamente. — E o vosso tem estado agitado demais, pelo que percebo.

 

Plínio tentou esboçar um sorriso, mas falhou. Sabia que a tia, mulher observadora e de gênio sereno, intuía mais do que dizia.

 

— Sonhei com mamãe esta noite... — disse ele, após um silêncio breve.

 

— Ah... tua mãe. Era moça de muita fibra e sensibilidade. Não admitia injustiça, mas também não confundia amor com leviandade. Devias pensar nela mais vezes.

 

Plínio assentiu. Serviu-se de um pão de milho e bebericou o café em silêncio. O peso das palavras da tia o acompanharia por toda aquela manhã.

 

***

 

Às dez horas, quando o sol já dourava o terreiro e as galinhas ciscavam entre as pedras, Everaldo chegou montado em seu cavalo baio, trazendo ares de quem viera do pasto. Desceu do animal, tirou o chapéu e limpou o suor da testa com o lenço encardido que trazia ao pescoço. Seus olhos, escuros e fundos, procuraram algo — ou alguém — no alpendre. Não tardou a avistar Plínio, que observava o terreiro encostado ao batente da porta.

 

— Sinhô Plínio, podemos prosear? — disse o vaqueiro, com firmeza, sem deixar transparecer emoção.

 

Plínio sentiu um calafrio lhe percorrer a espinha, mas respondeu com um gesto de cabeça.

 

— Pois não, seu Everaldo.

 

Caminharam até o galpão das ferramentas, onde podiam falar sem ouvidos curiosos. Ao fecharem a porta, o velho pôs-se diante do rapaz, os olhos cravados nele como punhais.

 

— Dizei-me, moço: estais vos abeirando da minha filha por gosto ou por descuido?

 

Plínio engoliu em seco. Sabia que aquele instante era decisivo.

 

— Não vos mentirei, seu Everaldo. Gosto de Januária. Não planejei... mas aconteceu. Também não sou homem de desonrar moça alheia. Respeito-a... e respeito a vós.

 

O vaqueiro cruzou os braços, e por um instante, pareceu medir cada palavra do rapaz.

 

— Se minha filha fosse de outra raça, de outra casa, talvez não vos importasse tanto — disse, amargo. — Mas é filha de um peão. Vosso pai foi meu patrão... vosmecê é herdeiro. E isso pesa, rapaz. Pesa muito mais do que o coração ousa supor.

 

— Eu não ignoro isso, seu Everaldo. Mas também não hei de fazer dela segredo ou pecado.

 

Everaldo suspirou fundo. Passou a mão na barba grisalha, depois fitou o moço como se procurasse no fundo dos olhos alguma centelha de verdade.

 

— Pois se é assim, trate de ser homem. Não brinque com o destino dos outros. Porque o sertão ouve, e a terra, quando magoada, cobra com juros.

 

Sem mais palavras, virou-se e saiu, deixando atrás de si um silêncio espesso como lama após enchente.

 

Plínio ficou parado por um momento. Depois, saiu devagar, o coração pulsando como tambor em dia de procissão.

 

Sabia, enfim, que as encruzilhadas da alma tinham sido alcançadas.

 

Quando Plínio saiu do galpão das ferramentas, um cavaleiro adentrava o terreiro da fazenda em ligeiro trote.

 

— Bom dia, meu senhor — disse o rapaz, tirando o chapéu com respeito. — Trago uma missiva destinada ao senhor Plínio Rufino Filho.

 

— Sou eu — respondeu Plínio, adiantando-se com curiosidade.

 

Sem mais cerimônias, o mensageiro lhe estendeu o envelope lacrado, virou o cavalo e partiu a galope, sumindo pela estrada de terra.

 

Plínio observou o selo. Era da casa pastoral. Rompeu o lacre com os dedos e leu atentamente a mensagem.

 

Fazenda Barro Preto,

 

Ao cuidado do Sr. Plínio Rufino Filho,

 

Saudações em Cristo Nosso Senhor,

 

Espero encontrá-lo em boa saúde e paz de espírito.

 

Venho por meio desta solicitar vossa presença a minha casa, com a maior brevidade possível, para um jantar com membro proeminentes da igreja. Há assunto de grave importância que requer vossa atenção, que haja vista , não tivemos a oportunidade de abordados ontem na casa pastoral — são assunto de natureza tanto espiritual quanto prática.

 

Recomendo discrição e urgência.

 

Que o Altíssimo lhe conceda discernimento e coragem.

 

Em fé,

Pastor Elias Benevenuto

 

Plínio leu e releu as linhas com vagar. O coração bateu-lhe mais forte no peito. A menção à “gravidade” e ao “caráter espiritual” deixava-lhe inquieto.

 

Guardou a carta no bolso do colete, limpou as mãos com o lenço que trazia preso ao cinto, e lançou um olhar em direção à casa-grande. Ainda pensou em procurar a tia em busca de conselhos , mas decidiu que o chamado era pessoal demais.

 

 

P.s.: se você ainda nada leu o capítulo 20 da série de contos ENTRE A VIDA E A MORTE, corá lá e confira, pois quem já leu diz que está impecável.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Felipe Felix
Enviado por Felipe Felix em 30/06/2025
Alterado em 30/06/2025
Copyright © 2025. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras