FelipeFFalcão

Contos versos e poesias

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A tarde descia com vagar, derramando sobre os campos uma luz dourada que enfeitava até mesmo os silêncios. Plínio regressava à Fazenda Barro Preto em marcha lenta, conduzindo Relâmpago com destreza, embora sua mente vagueasse em redemoinhos.

 

O calor do beijo de Januária ainda lhe abrasava os lábios. A lembrança da moça, molhada à beira do rio, os olhos súplices, e a audácia daquele gesto, tornava a lhe acometer em vagalhões. Não era, todavia, apenas o desejo que lhe tumultuava o espírito — era o peso do que tal ato representava. Januária era filha de Everaldo, seu mais antigo vaqueiro, homem sisudo, de reputação ilibada, conhecido por sua língua cortante e por mãos que não hesitavam em impor respeito. Um escândalo envolvendo a filha do peão e o herdeiro da casa Barro Preto seria bastante para incendiar toda a redondeza.

 

Chegando à sede, apeou-se sem pressa. O terreiro achava-se calado, salvo o rangido monótono do moinho d’água e o canto espaçado de uma juriti pousada no alto da mangueira. No alpendre, Everaldo, de semblante impassível, limpava o cano de sua espingarda de caça.

 

— Deus lhe dê boa tarde, sinhô Plínio — disse o velho, sem levantar os olhos do instrumento.

 

— Boa tarde, seu Everaldo — respondeu o moço, contendo o sobressalto da alma.

 

O olhar do empregado, ainda que breve, pareceu-lhe um exame. Plínio desviou-se com um aceno contido e adentrou a casa.

 

No interior, era acolhido por suave aroma de chá e biscoitos de manteiga. Sentada à mesa, tia Mercedes partilhava o lanche com duas jovens da vizinhança. Januária as servia com compostura. Plínio saudou tia Mercedes e as visitas.

 

— Que prazer tê-la entre nós, tia Mercedes — disse Plínio, com sincero entusiasmo. — Pretende demorar-se por cá?

 

— Um dia, talvez dois — respondeu ela, com um leve sorriso, pousando as luvas sobre a mesa.

 

— Que alegria. Sinta-se em vossa casa, minha tia — replicou o rapaz, com um gesto acolhedor.

 

Em seguida, voltou-se para as moças presentes, saudando-as com polidez. Todavia, seus olhos, como que impelidos por vontade alheia, repousaram sobre Januária. A moça retribuiu-lhe o olhar com naturalidade serena, como se nada de insólito houvesse ocorrido entre ambos. Seu cumprimento foi simples e respeitoso, os olhos baixos, o sorriso contido, mas firme o bastante para desnortear-lhe os pensamentos.

 

— Boa tarde, senhor Plínio — disse ela, com brandura.

 

O rapaz apenas curvou levemente a cabeça, em resposta, ocultando o turbilhão que lhe agitava o íntimo.

 

***

 

À noite, Plínio trajou-se com esmero. O jantar em casa do pastor Elias era um acontecimento digno de consideração, e não desejava causar má impressão. Por detrás do paletó bem assentado, contudo, habitava um espírito convulso, dilacerado entre a culpa e um tênue fio de esperança. A lembrança de Januária insistia em persegui-lo, mas o olhar de Margareth — doce, curioso, pleno de viço — começava a acender recôndita parte de sua alma.

 

Ao chegar à residência do pastor, foi recebido com amabilidade. Os convivas achavam-se reunidos em torno da mesa principal, ornada com travessas fumegantes, candelabros de estanho polido e louças de origem estrangeira.

 

— Alegra-me ver-vos aqui, rapaz — exclamou o pastor Elias, apertando-lhe a mão com entusiasmo. — A casa do Senhor rejubila-se com cada retorno.

 

Plínio respondeu com um sorriso contido. Mas quem, de fato, conseguiu dissipar-lhe, ainda que por um momento, o peso do dia, foi Margareth. Envolta em vestido azul-celeste, sentava-se junto à janela, onde a brisa noturna fazia esvoaçar-lhe alguns fios do cabelo.

 

Quando seus olhos encontraram os de Plínio, um instante de silêncio formou-se em seu peito, como se o tempo, por um breve lampejo, houvesse cessado.

 

— Boa noite, senhor Plínio — disse ela, com um sorriso sincero, um tanto tímido.

 

— Boa noite, senhorita Margareth — replicou ele, curvando ligeiramente a cabeça, num gesto de cortesia quase instintivo.

 

Ela indicou, com um gesto suave, a cadeira ao seu lado. Plínio, vencido pela gentileza, sentou-se. Pousou as mãos sobre os joelhos, buscando disfarçar o leve tremor que lhe acometia os dedos.

 

A conversação corria solta, entre risos contidos e comentários sobre a lavoura, os preparativos para a festividade da igreja e as novidades trazidas pelo último trem vindo da capital. Plínio, entretanto, ouvia pouco. Margareth falava com inteligência e graça, e quando sorria, seus olhos refulgiam de maneira que fazia o moço esquecer, por breve instante, o beijo à beira-rio e o olhar severo de Everaldo.

 

— E vós, senhor Plínio? — inquiriu ela, fitando-o com interesse genuíno. — Que leituras vos têm ocupado o espírito ultimamente?

 

— Eu...? — hesitou ele, tomado de surpresa. — Tenho lido Alencar... e algumas reflexões de Pascal.

 

— Pascal? — indagou ela, com brilho nos olhos. — Meu irmão costumava dizer que ler Pascal era como dialogar com a alma... Concordais com isso?

 

Plínio sorriu, e seus olhos, enfim, iluminaram-se.

 

— Concordo... sim. Por vezes, é como ser julgado por ela.

 

Margareth riu baixinho, e Plínio sentiu que, embora envolta em dilemas e contradições, aquela noite lhe trazia uma promessa. Algo novo. Algo limpo.

 

Mas, ao fundo, a sombra permanecia. O beijo. Januária. A espingarda.

 

E ele bem sabia: o destino, em sua marcha inexorável, não deixava dívida sem cobrança.

 

***

 

Após o jantar, os convivas trasladaram-se à sala de visitas, onde o velho piano da casa, herança da finada mãe do pastor, aguardava silente. Uma das moças, senhorita Beatriz, ensaiou algumas modinhas, enquanto os demais acomodavam-se em cadeiras de palhinha ou recostavam-se nos cantos, entretidos em amenidades.

 

Plínio, entretanto, mantinha-se próximo à janela, de onde contemplava a noite enluarada. Margareth achegou-se com discrição, trazendo duas xícaras de café recém-coado.

 

— Creio que uma boa noite começa com boa companhia... e um bom café — disse ela, com um sorriso gentil, estendendo-lhe a porcelana.

 

— Concordo inteiramente, senhorita — respondeu Plínio, aceitando-a com delicadeza. — Há gestos que aquecem mais que o próprio café.

 

Ela riu com suavidade, mas não respondeu de pronto. Ficaram ali, lado a lado, ouvindo ao longe o rufar de uma sanfona e o coaxar das rãs que habitavam o brejo detrás da capela. A noite, morna e serena, parecia suspensa por um fio invisível, prestes a se romper.

 

— Por vezes — disse ela, após breve silêncio —, sinto como se a vida esperasse de nós uma decisão que ainda não sabemos nomear.

 

Plínio fitou-a. Havia naquela frase uma sabedoria que lhe parecia maior do que os poucos anos que Margareth parecia carregar.

 

— E creio que, em certas ocasiões — respondeu ele, com voz contida —, mesmo sem nome, a decisão já se encetou dentro de nós... e é apenas o tempo que se encarregará de revelá-la.

 

Margareth abaixou os olhos, e por um instante, uma sombra passou por seu semblante. Mas logo sorriu, e afastou-se em direção ao piano, onde Beatriz finalizava uma canção de Martinho José Pereira.

 

Plínio permaneceu onde estava, com o coração dividido entre o aroma suave do café, a presença luminosa de Margareth... e a lembrança do corpo de Januária à beira do rio, como um segredo gravado a fogo.

 

Sabia, em seu íntimo, que não poderia permanecer em tal indecisão por muito tempo. O tempo era senhor implacável — e o sertão, ainda mais.

 

"P.S.: Se você ainda não leu o capítulo 20 da série de contos Entre a Vida e a Morte, corre lá conferir! Quem já leu garante: está imperdível!"

 

Felipe Felix
Enviado por Felipe Felix em 26/06/2025
Alterado em 26/06/2025
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