Os pássaros entoavam seus cantos no bambuzal e no manguezal que ladeavam a sede da fazenda Barro Preto. Plínio despertou com o ar da manhã, espreguiçou-se demoradamente e levantou-se sem esperar que lhe trouxessem a habitual água quente para o banho matinal. A aproximadamente quinhentos metros da casa, um rio de águas límpidas corria sereno, espelhando o céu que começava a clarear. Pegou uma toalha e um pedaço de sabão e dirigiu-se para lá, como fazia em sua infância.
Ainda envolto pela penumbra da madrugada, o jovem caminhava lentamente, sentindo o aroma da vegetação e o frescor do vento. No entanto, uma sensação inquietante o acompanhava, como se os passos que ecoavam não fossem apenas os seus.
Ao chegar à margem, deixou suas coisas no chão e mergulhou nas águas cristalinas, que, embora frias, despertaram seus sentidos. Quando emergiu, passando as mãos pelo rosto para afastar a água, viu uma silhueta ao lado de suas roupas. Piscou os olhos, acreditando ser um engano, mas não era.
— Januária? — perguntou, com a voz firme, mas curiosa.
— Sou eu, jovem Plínio — respondeu ela, com um tremor quase imperceptível na voz.
Aproximou-se da margem, a água escorrendo pelo corpo, enquanto buscava na expressão dela alguma explicação para sua presença inesperada.
— O que faz aqui? Aconteceu algo? — indagou, envolvendo-se na toalha.
Januária hesitou por um instante, as mãos entrelaçadas diante do ventre.
— Vi o senhor sair de casa e resolvi segui-lo.
Plínio franziu o cenho, desconfiado, e deu um passo à frente, com o semblante carregado.
— Por Deus, Januária... Perdeu o tino? Se teu pai tiver notícia disso, é desgraça certa pra nós dois!
— Ele está no curral, e só deve sair de lá ao meio-dia — disse ela, tentando parecer serena, mas com a respiração ainda entrecortada. — Eu só... não aguentava mais guardar isso em silêncio.
— Você não tem ideia do que está dizendo — murmurou Plínio, desviando o olhar.
— Tenho, sim. Sei muito bem. Sei que o senhor me olha diferente... E sei também que não sou mais criança.
Ela avançou mais um passo, a voz embargada.
— Eu o vi, aquela tarde... e vi também o que o senhor esconde quando me fita de longe.
Plínio permaneceu imóvel por alguns segundos, como se lutasse contra a própria consciência. Então deu um passo para trás, mas ela segurou-lhe o braço com firmeza.
— O senhor pode me mandar embora agora, e eu juro que nunca mais toco no assunto... Mas precisava saber se tudo isso é só coisa da minha cabeça — disse ela, os olhos marejados, suplicantes.
Houve um instante de silêncio pesado, onde apenas o murmúrio do rio e o canto dos pássaros ousavam falar. Plínio fitava-a com olhos indecisos, a respiração entrecortada, a alma dividida.
E então, como se todo o juízo lhe escapasse por entre os dedos, cedeu ao ímpeto e a beijou — um beijo que não era apenas desejo, mas também culpa, memória e fatalidade.
Naquele instante, a razão deu lugar ao instinto, e ambos se perderam no turbilhão de emoções. Ainda assim, o eco das palavras de Januária e as implicações daquele momento ficariam pairando sobre ele como uma sombra.
Ao final, quando o silêncio novamente tomou conta, ela se afastou, recompondo-se rapidamente.
— Eu vou à horta buscar erva-cidreira. Não se preocupe, ninguém saberá de nada.
E, com um último olhar, deixou-o à margem do rio, sozinho com suas reflexões e as águas que, agora, pareciam espelhar a inquietude de sua alma.
***
Plínio mergulhou mais uma vez nas águas límpidas e frias do rio, deixando que a corrente suave lhe lavasse o corpo e os pensamentos. Quando regressou à casa, o sol já se erguia no horizonte, projetando sombras longas pela cabeceira do vale. Vestiu sua melhor indumentária e desceu até a sala de jantar, onde a mesa se encontrava meticulosamente posta.
Aos domingos, os empregados domésticos eram dispensados para assistir à missa, restando apenas os vaqueiros, cuja rotina matutina incluía a ordenha e o envio do leite à cooperativa. Na casa grande, Corisco, em sua costumeira discrição, serviu-se de café, escolheu duas roscas e tomou assento à mesa. O domingo era o único dia em que os patrões viam-se obrigados a servir-se sozinhos no desjejum.
Após a refeição, Plínio pediu a um dos serviçais do estabulo que selasse o Relâmpago, seu leal companheiro de cavalgadas, e dirigiu-se à cidade.
A manhã resplandecia, e a temperatura amena tornava o ato de cavalgar particularmente aprazível. Ao adentrar a cidade, encontrou-a pulsante, repleta de transeuntes e veículos rústicos: cavalos, charretes e algumas carruagens. As damas da elite desfilavam em trajes de gala, enquanto os menos favorecidos trajavam roupas desbotadas, de tons opacos que pareciam uniformizar a multidão.
Por onde passava, Plínio era alvo de cumprimentos — alguns efusivos, outros discretos, como simples acenos de cabeça. Ao chegar à frente da igreja, um criado prontamente tomou as rédeas de Relâmpago, conduzindo-o ao estábulo. No interior do templo, o ambiente fervilhava. Plínio, com olhar atento, procurou a irmã, que acenava com um discreto movimento do leque. Aproximou-se, sendo recebido com um abraço caloroso.
— Bom dia, meu irmão. Que alegria vê-lo aqui — disse ela, depositando um beijo afetuoso em seu rosto.
Logo, apresentou-lhe uma jovem de beleza angelical, com cabelos dourados e olhos azuis que pareciam guardar a profundidade do céu.
— Esta é Margareth, filha do pastor Adalberto. Estuda na capital, mas está de férias e ficará conosco por três meses.
— Muito prazer — respondeu Plínio, com um tom contido, mas visivelmente interessado.
Engajaram-se em uma conversa amena, comparando as peculiaridades da vida urbana com a singeleza do campo, até que foram interrompidos pela voz grave e serena do pastor Elias, que iniciava a celebração.
— Bom dia, amados irmãos. Que a graça do nosso Senhor Jesus Cristo esteja convosco. Peço que tomem seus lugares.
A congregação acomodou-se em silêncio reverente, enquanto o culto dominical tinha início. Um cântico comunitário evocando a paixão de Cristo no Calvário elevou-se em uníssono, refletindo o fervor devocional dos presentes. Seguiu-se uma homilia centrada no tema do perdão e do amor divino, partindo da narrativa de Noé e do dilúvio. O pastor destacou a tensão entre justiça e misericórdia na natureza divina — Deus, embora tenha deplorado a corrupção humana, ainda assim preservou Noé e sua família como símbolo de esperança e redenção.
A pregação ressoou entre os fiéis, que, em vários momentos, manifestavam sua concordância por meio de exclamações como “amém” e “glória a Deus”. Após cerca de uma hora de discurso, o pastor convidou os presentes a se levantarem, enquanto as crianças eram conduzidas à sala reservada ao fundo do templo. Simultaneamente, os adultos entoaram um hino que expressava a esperança escatológica de habitar com Cristo na eternidade.
A rotina dominical incluía, ainda, a Escola Bíblica para as crianças, espaço destinado à instrução espiritual por meio de narrativas sagradas — histórias de José do Egito, Jacó e Josué eram recontadas com ênfase em valores morais. Além disso, havia ensaios corais organizados por faixa etária, com vistas a uma apresentação musical que precedia o encerramento formal do culto. Às 11h40 em ponto, uma oração coletiva marcava o término da celebração.
Ao fim do culto, o pastor Elias postou-se à entrada do templo para saudar os fiéis. Plínio, que continuara a conversar com Margareth, somente se aproximou quando os últimos já se retiravam. Foi recebido com cordialidade pelo pastor, que, em tom espirituoso, comentou:
— Venha mais vezes, jovem Plínio. A casa do Senhor estará sempre de portas abertas para você.
E, dirigindo-se a Margareth, acrescentou com um leve sorriso:
— Percebo que fez amizade com minha sobrinha. Espero que ela não seja o principal motivo de sua presença aqui.
O comentário descontraído deixou Plínio visivelmente constrangido. Mas o pastor, com um gesto conciliador, concluiu:
— Estou apenas brincando. Margareth é, de fato, uma jovem admirável. No entanto, confio que sua vinda foi motivada pelo desejo de fortalecer sua comunhão com Cristo. A propósito, esta noite ofereceremos um jantar para a família e alguns membros proeminentes da igreja — será muito bem-vindo.
Plínio agradeceu com um leve meneio de cabeça, os olhos voltados, por um instante, para o rosto sereno de Margareth, cuja presença já lhe causava mais do que mera curiosidade.
"P.S.: Se você ainda não leu o capítulo 17-18 da série de contos Entre a Vida e a Morte, corre lá conferir! Quem já leu garante: está imperdível!"