17
Mais tarde, já no escritório, Plínio contemplava, em silêncio, o retrato dos pais. Um sentimento de impotência lhe subia ao peito — como se estivesse à deriva num oceano de obrigações que jamais cogitara conhecer tão de perto.
Seu pai, homem de trato firme e coração magnânimo, jamais precisara erguer a voz. Governava com justiça e serenidade, e por isso granjeara o respeito dos homens e a devoção dos criados.
Plínio, porém, ainda era conhecido pelo apelido de infância: Corisco — alcunha nascida de sua destreza nas brincadeiras da fazenda. Quando se soltavam galinhas no terreiro, era sempre ele quem as capturava com um salto ágil, veloz como um raio.
Contudo, já não era mais o menino das galinhas. Aspirava, agora, a ser reconhecido como o novo senhor da Fazenda Barro Preto — não por temor, mas por mérito.
Foi então que uma batida à porta o arrancou dos devaneios.
— Senhor Plínio — anunciou o mordomo —, o Dr. Ferreira aguarda-vos.
— Que entre.
O advogado adentrou o recinto com compostura.
— Permiti-me dizer, senhor, que vos conduzistes com altivez. Os usurários tremeram diante da vossa postura.
Plínio, pensativo, respondeu.
— Temo ter-me excedido. Não me reconheci em minhas palavras. Mas… e quanto à deliberação?
— Todos concordaram em quitar os débitos amanhã. Vossa advertência os intimidou sobremaneira.
O jovem herdeiro assentiu, murmurando:
— Meu pai dizia: “A força só é legítima quando amparada pela justiça.”
— Um pensamento nobre — replicou Ferreira. — Mas lembrai-vos: há ocasiões em que a severidade se faz instrumento da retidão.
Plínio respirou fundo. Sabia, no íntimo, que ainda teria muito que aprender. Mas, naquele instante, uma certeza começava a se firmar: a verdadeira liderança não se constrói no medo, mas na constância moral e no exemplo que inspira.
18
Plínio despertou com o sol já alto no horizonte. Sentou-se à beira da cama, sentindo uma estranha e súbita transformação. Durante a noite, algo havia mudado dentro de si; percebia agora um amadurecimento inesperado. A ausência de seu pai trouxera uma carga de responsabilidades que lhe exigia abandonar a leveza da juventude e adotar a postura firme e resoluta do Sr. Plínio.
A recente reunião com os comerciantes evidenciara que ele não podia mais se permitir ser apenas o jovem cordial e despreocupado de outrora.
Vestiu-se com a muda de roupas meticulosamente preparada pelo criado e deixada sobre o baú aos pés da cama. Após ajeitar os cabelos diante do espelho com um gesto decidido, desceu à sala, onde Demétrio, o mordomo leal, o aguardava ao pé da escada.
— Bom dia, jovem Plínio. O que desejais para o desjejum? — perguntou Demétrio, com a polidez costumeira.
— Bom dia, Demétrio. Quero apenas uma farofa de ovos acompanhada de café. Ordene que Relâmpago seja selado, pois partirei para a cidade após o desjejum.
— Farofa de ovos! — exclamou o mordomo, entre a surpresa e a leve censura. — Isso é alimento de...
— É o que desejo como minha primeira refeição do dia — interrompeu Plínio, com firmeza, deixando clara a sua determinação.
— Muito bem, jovem Plínio. Providenciarei imediatamente — respondeu Demétrio, curvando-se levemente em sinal de respeito.
***
Plínio cavalgava com destreza sobre Relâmpago, seu imponente corcel. Diferentemente da última ocasião em que atravessara aquela estrada em vertiginosa disparada, buscando um médico para salvar a vida da mãe, agora avançava em ritmo moderado. Mantinha o trote pelas planícies e reduzia a marcha nas elevações e declives. Ausente de pressa, deixava-se absorver pela contemplação da paisagem, saboreando a serenidade que o envolvia.
Quando o relógio assinalava as onze horas da manhã, transpôs os limites da cidade, onde poucos transeuntes se aventuravam pelas vias desertas, absorvidos pela pausa do almoço. Sem titubear, dirigiu-se à residência de sua irmã. Desmontou de Relâmpago e confiou a montaria aos cuidados do serviçal.
À porta principal, o mordomo o acolheu com a habitual deferência, conduzindo-o à sala de espera.
— Tenha a gentileza de aguardar, senhor — disse Alfredo, o mordomo, com voz grave e pausada. — Anunciarei vossa chegada de imediato.
Julieth estava ao piano. As notas flutuavam pela biblioteca como um murmúrio sereno, quando Alfredo adentrou, fechando a porta com um movimento preciso.
— O que houve, Alfredo?
— Minha senhora, o jovem Plínio acaba de chegar.
— Que prazer inestimável! Irei ter com ele imediatamente.
Julieth caminhava com uma pressa graciosa e, ao avistar o irmão, envolveu-o num abraço caloroso.
— Meu querido irmão! Que saudade avassaladora. É uma alegria indescritível vê-lo. O que o trouxe à cidade? Soube que deixaste forte impressão entre os comerciantes. — E, notando-lhe o semblante carregado: — O que te inquieta, meu irmão?
— Vim conferir, junto ao Dr. Ferreira, se os comerciantes cumprem o acordado. E também… pedir-te um conselho.
— Pedir-me um conselho? — indagou ela, surpresa.
— Sim — afirmou Plínio. — Tens algum lugar onde possamos conversar a sós?
— Podemos ir até a biblioteca, mas aqui, nas dependências da casa, as paredes têm ouvidos. Talvez seja mais prudente conversarmos no jardim.
Ambos dirigiram-se ao jardim. Durante longo tempo, o irmão caminhou em silêncio, pensativo.
A residência de Julieth, situada no lado ostentoso da cidade, era também onde funcionava a fábrica de farinha do marido. O odor acre do milho fermentado, deixado de molho nos tanques, misturava-se ao suave aroma das rosas e crisântemos que adornavam o jardim.
— Então, meu irmão — disse Julieth, rompendo o silêncio —, sobre o que desejas falar?
Ele hesitou antes de responder, como se ponderasse cuidadosamente suas palavras.
— Sabes que te tenho em grande apreço, Julieth, e nutro profundo respeito por ti. Contudo, carrego uma inquietação. Estou prestes a completar vinte e dois anos e, como bem sabes, nosso pai encontra-se enfermo. Sinceramente, não sei se se restabelecerá. Sendo o único filho homem, logo terei de assumir os negócios da família — algo que, apesar de não desejar, é inevitável.
Fez uma pausa. Suas palavras seguintes vieram carregadas de dilema.
— Mas há outra questão que me aflige. Preciso encontrar uma esposa. Sei que, ao me casar, talvez deixem de me ver como o “Corisco”, o filho caçula da família Rufino, e passem a enxergar-me como um homem digno de respeito. Contudo, não sei por onde começar.
— Não seria má ideia, de fato, que te casasses — disse Julieth, com olhar perspicaz. — Já tens alguém em mente?
Ele hesitou por um momento, como se temesse a reação da irmã.
— Sim… mas ninguém nesta cidade a aprovaria.
— E por que não?
— Vem de família humilde — disse, omitindo deliberadamente o fato de que a moça trabalhava num bordel na capital.
— Conhecemos a família dela? — questionou Julieth.
— Não. Conheci-a na capital.
— É uma situação difícil, meu irmão — ponderou Julieth. — Mas o que importa é que a amas. O que os outros pensam não deveria ser determinante.
Ele suspirou, ciente de que a realidade era mais dura do que os princípios.
— Pode ser… mas sabes como as línguas desta cidade podem ser cruéis.
— Sim, é verdade — assentiu Julieth. Após breve silêncio, sugeriu, com um leve sorriso: — Nesse caso, por que não cortejares uma moça da cidade? Garanto que, se o fizeres, bastará estalar os dedos e surgirão tantas pretendentes que ficarás atordoado. És um rapaz bonito e honrado. Já pensaste em ir à igreja no próximo domingo? Posso apresentar-te algumas jovens de boas famílias.
Ele ponderou por um instante, absorvendo as palavras da irmã.
— Vou refletir sobre isso.
Nesse momento, uma criada aproximou-se com um toque discreto.
— Perdão, senhora — disse ela —, o Sr. Paulo chegou para o almoço, e a refeição está quase servida.
— Muito obrigada — respondeu Julieth, erguendo-se. — Já vamos. Almoças conosco, irmão?
— Aceito o convite.
"P.S.: Se você ainda não leu o capítulo 15 -16 da série de contos Entre a Vida e a Morte, corre lá conferir! Quem já leu garante: está imperdível!"