FelipeFFalcão

Contos versos e poesias

Textos


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Enfim, raiara a tão esperada sexta-feira. Na Fazenda Barro Preto, os criados moviam-se num afã constante, tomados de mistura de diligência e inquietude, pois, no dia seguinte, esperava-se a chegada de personalidades ilustres, vindas da cidade.

 

O jovem Plínio, fiel ao seu zelo inflexível, determinara que tudo se fizesse com meticulosa perfeição. Para o banquete, sacrificara-se um garrote bem fornido, além de cinco leitões tenros e mais de cinquenta aves de capoeira. Calculava-se que comparecessem, ao menos, cento e cinquenta convivas.

 

Ainda que não se aguardasse que grande parte destes pernoitasse na propriedade, os trinta e cinco aposentos foram esmeradamente limpos, e as roupas de cama substituídas por peças de linho, alvejadas e bem passadas. Reforçara-se também o corpo de servidores: duas cozinheiras contratadas, oito moças encarregadas da faxina dos cômodos e diversos rapazes incumbidos do serviço de mesa.

 

Para completar as precauções, contratara-se um pequeno grupo de cinco homens armados, encarregados de zelar pela segurança dos presentes. Se bem não houvesse ameaça concreta na região, o prudente Plínio, conhecendo os riscos que o plano com os credores de seu pai poderia ensejar, julgara sensato prevenir-se. A presença dos jagunços — ou capangas, como os designava o vulgo — não constituía desperdício, senão investimento necessário.

 

16

 

Logo após o almoço, começaram a aportar os primeiros convidados à Barro Preto. Os parentes mais íntimos eram recebidos com galhardia na sala de visitas, ao passo que os demais eram conduzidos ao majestoso salão de festas, espaço com capacidade para trezentas almas.

 

Esse mesmo salão, nos idos de 1840, fora erguido como habitação para os cativos. Já em 1859, Emanuel Rufino da Silva — avô de Plínio Rufino Filho — homem então tomado pelos anos e pelas enfermidades, passou a preparar-se para o que chamava de sua “partida inevitável”.

 

Era ele varão de vasta leitura e atento às novidades do mundo. Pelas cartas e pelos jornais estrangeiros, chegavam-lhe rumores sobre a iminente abolição da escravidão nas colônias e nos impérios ultramarinos. Tal perspectiva inquietava-lhe o espírito, não por temor, mas por consciência.

 

— Não desejo que, após minha morte, me recordem apenas como senhor de escravos — dizia. — Quero que se diga que fui, ainda que timidamente, quem primeiro lhes estendeu a mão com alguma dignidade.

 

Com esse intento, ordenou a edificação de uma vila afastada da sede, entre o laranjal e a várzea, para nela abrigar os cativos. Mandou construir casas de taipa e adobe, cobertas de telha-vã, cada qual com seu pequeno quintal. Providenciou hortas, fontes de água limpa e, não menos importante, uma capela dedicada a São Benedito.

 

O antigo alojamento dos escravos, antes escuro e insalubre, foi paulatinamente desativado. Iniciou-se ali uma reforma longa e meticulosa. Mais tarde, o edifício seria convertido em salão de festas — como se, afinal, a dor do passado cedesse lugar à esperança de um novo tempo.

 

Tal gesto não se deveu, como muitos imaginaram, a caridade romântica, mas a um senso de justiça tardia — e, talvez, de arrependimento. Emanuel, nos estertores da existência, trazia no olhar um brilho brando, como quem compreendesse, mesmo tarde, que o mundo haveria de mudar, com ou sem sua aquiescência.

 

Assim nasceu a Vila dos Libertos, embrião de um tempo que ainda tardaria a raiar.

 

Com o advento da abolição, o velho edifício foi definitivamente reformado e convertido em recinto de festas. Mandaram-se fabricar mesas de madeira nobre, cadeiras de encosto confortável e até um piano de cauda, à disposição dos que desejassem abrilhantar a ocasião com harmonias elevadas.

 

***

 

À medida que a tarde avançava, a celebração atingia seu fastígio. As damas, em conversas de tom contido, brindavam com taças de champanha; os cavalheiros, por sua vez, degustavam vinhos de guarda e licores de alta estirpe, tudo servido com liberalidade e decoro.

 

Quando o relógio de mármore de Carrara, sobre a lareira, assinalou as sete horas, Corisco, em tom comedido, dirigiu-se a Demétrio:

 

— Convocai os associados de meu pai à sala de jantar.

 

Ainda que ausente — encerrado nas silenciosas paredes de um manicômio —, o patriarca Rufino fazia-se presente como sombra inevitável. Corisco, cônscio da autoridade herdada, cuidava de deixar claro que a sucessão não implicava negligência.

 

À entrada da sala, dois homens armados recebiam os convidados com discrição. No interior, o herdeiro sentava-se à cabeceira da mesa, tendo ao lado o Dr. Ferreira, advogado da família, cuja presença emprestava formalidade à ocasião.

 

Logo que o último dos convocados adentrou, Demétrio cerrou a porta, seguindo ordens de não mais permitir interrupções.

 

— Agradeço-vos, senhores — iniciou Corisco, tamborilando os dedos sobre a mesa —, por haverdes atendido ao meu chamado. Espero que a hospitalidade da Casa Rufino vos tenha sido condigna.

 

Após breves murmúrios de aprovação, levantou-se e, com voz firme, declarou:

 

— Irmãos, serei direto. Desde que meu pai foi forçado a afastar-se da administração, por enfermidade, alguns dentre vós deixaram, deliberadamente, de cumprir com os compromissos assumidos para com esta casa. O mais grave, porém, é que continuais a beneficiar-vos dos carregamentos, como se os frutos de nosso labor fossem res nullius — bens sem dono.

 

A reação foi imediata: protestos, exclamações, ameaças veladas. A balbúrdia ameaçava instalar-se, até que Corisco golpeou a mesa com veemência:

 

— Silêncio! — bradou, e o timbre de sua voz impôs o silêncio que os ânimos já não alcançavam.

O advogado interveio, comedidamente:

 

— Plínio, recomponde-vos. Agora é momento de razão, não de ímpeto.

 

O jovem endireitou-se, alisou os cabelos com gesto estudado e, reassentando-se, prosseguiu:

 

— Como dizia, todos vós tendes dívidas para com a Fazenda Barro Preto. Estou aqui para afirmar que meu pai vive — ainda que distante —, e que eu, como seu filho, sou o único responsável pelos negócios. Exijo que regularizeis vossas pendências. Ou o pagamento será feito agora, e os contratos preservados, ou romperei com todos vós e passarei a negociar diretamente com os mercadores da capital.

 

Suas palavras ressoaram como um sino. Silêncio. Olhares cúmplices. Cálculos interiores.

Corisco ergueu-se uma última vez:

 

— Considerai-vos advertidos. Esta foi a última ocasião em que tolerei evasivas. Doravante, não esperai clemência.

 

E, dito isto, retirou-se, deixando os negociantes entre o temor e a resignação.

 

 

"P.S.: Se você ainda não leu o capítulo 14 da série de contos Entre a Vida e a Morte, corre lá conferir! Quem já leu garante: está imperdível!"

 

 

 

Felipe Felix
Enviado por Felipe Felix em 11/06/2025
Alterado em 11/06/2025
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