FelipeFFalcão

Contos versos e poesias

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A vida privada dos membros da elite sempre despertara viva curiosidade nos que os cercam, e, nas grandes casas aristocráticas, os criados invariavelmente tornam-se guardiães de segredos ocultos, conhecendo por vezes os meandros mais recônditos da existência de seus amos.

 

Na Fazenda dos Rufino, assunto recorrente entre os serviçais era a inusitada e alarmante inclinação do jovem Plínio à embriaguez — herdeiro da fortuna e do nome da família.

 

— Vossuncês não imaginam — principiou Marlena, chefe das cozinheiras, com expressão carregada —, ontem, logo após o jantar, o moço Plínio deu cabo, sozinho, duma garrafa inteira de vinho... Há de estar passando por tribulação das grandes.

 

— Não é possível! — exclamou Edite, ajudante de cozinha, em tom de incredulidade. — Ele nunca foi de se chegar sequer ao ponche nas festas de São João. Pra mim, isso é coisa do coração. Meu irmão, quando levou um revés duma moça por quem se engraçara, meteu-se na cachaça até quase perder os sentidos.

 

— Permita-me discordar — retorquiu Januária, em tom pensativo. — O moço perdeu a mãe há bem pouco, e o pai, como é sabido, sofreu um colapso de espírito no mesmíssimo dia. Demétrius contou que o senhor foi recolhido a um hospício na capital. E ainda pesa sobre os ombros do rapaz todo o trato dos negócios da fazenda, que não são poucos. É carga demais para um só.

 

Nenhum dos demais replicou. Marlena deu de ombros, suspirou com resignação e voltou aos seus preparos.

 

***

 

A cidade despertara em fervorosa atividade naquela manhã, com constante vaivém de carroças e carruagens pelas ruas, reflexo do vigor econômico e social do lugar. Corisco, atento a seus deveres, dirigiu-se em primeiro ao posto do Correio, na esperança de receber alguma carta vinda da capital. Como nada houvera, seguiu para o escritório de advocacia Ferreira & Silvas, onde o aguardavam assuntos de relevo.

 

O dito escritório situava-se em posição privilegiada, defronte à praça principal — verdadeiro coração do poder e das relações na urbe — onde coexistiam as instituições mais fulcrais da vida civilizada: a Igreja, alicerce da fé; o banco, guardião da ordem financeira; o correio, elo com o mundo exterior; e o mercado, onde se negociavam mantimentos, ferramentas, tecidos e mesmo remédios para os animais. Tal praça, assim, resumia, em si, os domínios do sagrado e do profano, o espírito e a matéria, todos entrelaçados no viver cotidiano.

 

Ao transpor a soleira do escritório, Corisco foi recepcionado por Dona Margoth, mulher corpulenta e de feições gentis, cuja voz doce e modos de trato contrastavam com a robustez do corpo, indicando que, por vezes, as aparências encobrem dons inesperados.

 

— Louvado seja, Dona Margoth — saudou ele, com a polidez que o ambiente requeria.

 

— Para sempre seja louvado, jovem senhor Plínio — replicou ela com cortesia cerimoniosa. — É sempre prazer revê-lo por estas bandas.

 

— O prazer é meu, minha senhora. Encontra-se o doutor Ferreira?

 

— Sim, está em sua sala. Vou anunciar-vos.

 

Com dois toques breves à porta, girou a maçaneta e inclinou ligeiramente a cabeça:

 

— Doutor Ferreira, o jovem senhor Rufino está à espera para tratar dos negócios.

 

— Muito bem. Dizei-lhe que entre. E nos traga dois cafés.

 

— Pois não, doutor.

 

Virando-se para Plínio, anunciou:

 

— Podeis entrar, senhor.

 

— Muito agradecido, Dona Margoth.

 

Retirando o chapéu com discreto gesto, Plínio adentrou o recinto.

 

— Louvado seja, senhor Plínio. Fico satisfeito por haverdes vindo com tamanha presteza. Temos questões de suma gravidade a considerar. Rogai que vos senteis.

 

— Com certeza, doutor. Logo que recebi vossa missiva, julguei de toda a importância vir sem demora para que pudéssemos tratar do que for necessário.

 

Plínio, todavia, sentiu-se vagamente desconcertado pela postura do advogado, que, sem sequer levantar-se, limitara-se a mexer nos papéis sobre a mesa.

 

— Ah, cá está — disse o doutor Ferreira, retirando de um canto da escrivaninha um livro de capa escura, volumoso e gasto pelo tempo —, o livro de contas de vosso pai.

 

Abriu-o e o empurrou na direção de Plínio.

 

— Meu caro, a situação da fazenda é delicada. Vosso pai contraiu dívida com o banco no montante de cinquenta mil cruzeiros. Embora tenhamos bens, há grande dificuldade de liquidez. Muitos dos clientes deixaram de honrar os compromissos.

 

— E quem é o responsável por efetuar tais cobranças e garantir os repasses ao banco?

 

— Nosso escritório, naturalmente.

 

— E por que razão os devedores não têm quitado suas obrigações?

 

— Alegam que, com a ausência prolongada de vosso pai, não reconhecem autoridade para efetivar o pagamento.

 

— Entretanto, seguem a receber as encomendas costumeiras, não?

 

— Sim, sem falta.

 

Plínio silenciou por breve momento, ponderando as palavras com o cuidado que a ocasião exigia.

 

— Pois muito bem, doutor Ferreira. Mandai avisar a todos os devedores que no próximo sábado haverá festa na Fazenda Barro Preto. Quero-os todos presentes.

 

O advogado arregalou levemente os olhos ante a proposta inesperada. Ainda assim, após uma pausa, assentiu com leve inclinação da cabeça.

 

 

 

"P.S.: Se você ainda não leu o capítulo 13 da série de contos Entre a Vida e a Morte, corre lá conferir! Quem já leu garante: está imperdível!"

 

 

 

 

Felipe Felix
Enviado por Felipe Felix em 06/06/2025
Alterado em 06/06/2025
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