Ao som do canto pertinaz dos pássaros, que pareciam anunciar a alvorada iminente, Corisco despertou com a incômoda sensação de que um violino desafinado lhe retinia dentro da cabeça. O tempo, medido por aquelas notas desordenadas e agudas, tornava o recinto ainda mais opressivo.
Num gesto de desespero silencioso, comprimiu contra o rosto o travesseiro, na vã tentativa de abafar tanto o bulício da natureza quanto a inquietação que lhe corroía o espírito. Mas o silêncio, tal qual o repouso, mostrou-se breve.
Duas discretas batidas à porta interromperam-lhe o esforço inútil. O mordomo, com a habitual compostura, adentrou o aposento trazendo uma bandeja de prata reluzente. Sobre ela, uma taça única deixava escapar um aroma acre, de evidente teor medicinal.
— Muito bom dia, senhor. Trouxe-lhe algo que, julgo, poderá aliviar os efeitos de sua indisposição matutina — disse o criado, com uma cortesia irrepreensível, depositando a bandeja sobre o criado-mudo.
Corisco, ainda submerso na névoa espessa de sua ressaca, entreabriu os olhos com manifesta relutância, procurando reunir os fragmentos desconexos da noite anterior. A cabeça latejava, pesada como chumbo, esmagada sob o peso de excessos que, agora, pareciam pertencer a um tempo longínquo, dissociado do presente.
— Ressaca… — murmurou, a voz arrastada, como se brotasse das profundezas da alma. — Quão frágil é o intelecto, que tão facilmente se rende aos prazeres fugazes...
Demétrius, sempre contido, lançou ao amo um olhar leve, quase imperceptível, que tangenciava a ironia sem jamais transgredir-lhe a fronteira. Havia ali um entendimento tácito.
— Vossa senhoria entregou-se, ontem, com singular entusiasmo à celebração. A generosidade, mormente nas libações, foi deveras notável.
Corisco esboçou um sorriso que misturava amargor e deboche, ecoando o comentário com um sussurro mordaz:
— A generosidade é, sem dúvida, uma virtude perigosa quando se trata de vinho...
Erguendo-se com vagar do leito, tomou a taça, contemplando por um instante o líquido turvo antes de sorvê-lo com resignação. O gosto amargo, quase metálico, pareceu-lhe uma alegoria dos desregramentos da véspera.
— Agradeço-lhe, Demétrius — disse, devolvendo a taça com um gesto fatigado. — E, se não for pedir demasiado, ordene que cessem os pássaros sua cantoria… O mundo já possui ruído em demasia por si só.
O mordomo, impassível, curvou ligeiramente a cabeça em sinal de assentimento:
— Assim será feito, senhor.
E, com a discrição de sempre, retirou-se, deixando Corisco entregue aos primeiros raios de sol, que adentravam o quarto como um prenúncio inevitável de claridade — claridade esta para a qual ele, naquele instante, ainda não se sentia pronto.
***
Transcorrido cerca de uma hora após ingerir a infusão, Corisco já percebia melhora notável em seu estado. Levantou-se com ânimo renovado, lavou o rosto com água fresca da jarra e, trajando sua melhor casaca e calçando as botas bem polidas, desceu para o desjejum.
A mesa estava posta com primor, conforme o hábito da casa, mas nenhuma iguaria lhe despertava o apetite. Ao assentar-se, Demétrius se aproximou com a mesma reverência de sempre.
— Como se sente, senhor? — indagou com voz contida.
— Muito melhor — respondeu Corisco, lançando um olhar indiferente sobre os pratos à sua frente.
Após breve pausa, declarou com firmeza:
— Não desejo nada disso. Dizei à cozinha que me prepare dois ovos quentes, suco de laranja espremido na hora e queijo coalho bem assado.
— Cuidarei disso sem demora — respondeu o mordomo.
Antes que este se retirasse, Corisco completou, com um tom de determinação:
— E, logo após, mande aprontar a carruagem. Tenho de dirigir-me ao escritório do Dr. Menelau.
"P.S.: Se você ainda não leu o capítulo 12 da série de contos Entre a Vida e a Morte, corre lá conferir! Quem já leu garante: está imperdível!"