A carruagem que conduzia o jovem Plínio Rufino Filho, mais conhecido entre os antigos da região pelo alcunha de Corisco, chegou enfim à Fazenda Barro Preto, quando o relógio da varanda grande já rompia as quatro da tarde. O jovem apeou com elegância, lançando um olhar atento ao redor. Quase tudo lhe parecera como dantes, salvo a vegetação, que se mostrava viçosa como em tempos de fartura.
Ao erguer os olhos para o vestíbulo, divisou, no alto da escadaria, o velho mordomo Demétrius, postado como sentinela, com o semblante de quem aguardava que outro passageiro ainda se desprendesse da carruagem.
Percebendo-lhe o olhar inquisitivo, Corisco adiantou-se:
— Meu pai, infelizmente, foi recolhido à Santa Casa. O doutor julgou prudente interná-lo.
O servo limitou-se a aquiescer com um leve meneio de cabeça, sem mais palavras.
Adentrando o solar, Corisco depositou o chapéu de feltro no chapeleiro de nogueira. Deteve-se por um instante, fazendo minucioso escrutínio do ambiente, como a colher memórias do tempo da infância. Sentou-se, por fim, numa das poltronas de couro, enquanto Demétrius permanecia próximo, imóvel, à espera de alguma ordem.
— Deseja Vossa Senhoria algo especial para a janta? — indagou o mordomo.
— Não. O que houver em preparo há de me servir bem. Apenas, antes de cear, rogo um banho, que me livre da poeira desta jornada.
— Pois não, Senhor. Irei providenciar.
***
Na cozinha, fervilhava-se o café para a peonada que, finda a lida, retornaria às suas moradas. Uma das criadas negras, sentada num tamborete, debulhava favas para o almoço do dia seguinte. Demétrio, aproximando-se com a autoridade serena de seus muitos anos de casa, disse:
— Januária... o senhorzinho retornou. Deseja banhar-se antes da ceia.
— Sim, Sinhô. Já vou botar água no fogo e preparar o aposento de banho.
***
Depois de lavar-se, Corisco entregou-se a um lauto jantar: queijo fresco, ovos caipiras, carne de porco ensopada e mandioca bem cozida. Ao final, uma generosa caneca de café completou a refeição. Saciado — como dizia sua falecida mãe —, mandou chamar Demétrio.
— Às ordens, meu senhor — respondeu o criado, aproximando-se da mesa.
— Mande selar meu cavalo. Quero visitar o túmulo de mamãe.
— De pronto, senhor.
Ao aproximar-se de Relâmpago, seu fiel cavalo, o animal, reconhecendo-lhe a presença, relinchou e balançou a crina com alegria. Corisco alisou-lhe o focinho, passou a mão sobre as ancas do equino, e montou com destreza.
Cavalgou em silêncio rumo ao cemitério. Sentia-se impelido a verificar o estado da sepultura materna. Ao chegar, notou que os empregados haviam plantado flores ao redor do túmulo. Eram plantas nativas, entremeadas por um círculo de rosas antigas, que delineavam o contorno da cova.
Ajoelhou-se. Colheu um botão de flor. E permaneceu ali, silencioso, contemplando o solo onde jazia sua genitora. As lágrimas vieram-lhe sem anúncio, rolando-lhe pelo rosto.
— Mãe... perdoai-me por não ter vindo antes. Desde que vos fostes, meu pai não mais suportou o luto. Entrou num estado que o doutor chamou de choque nervoso. Houve de ser levado à capital, e internado na ala dos desvalidos de juízo. Não houve outro remédio, senão deixá-lo sob os cuidados dos médicos.
Por longo tempo permaneceu ali, em pranto contido. Arrancou algumas ervas daninhas que ameaçavam as flores, montou em seu cavalo e retornou à sede, perdido em pensamentos.
***
Na manhã seguinte, antes mesmo que o galo anunciasse o dia, Corisco já se levantara. Tomou um café forte, levou consigo um naco de pão caseiro e saiu a percorrer os setores produtivos da fazenda.
Ao regressar, já com o sol declinando no firmamento, seguiu pelo caminho do rio. Foi quando seus olhos, quase por encanto, depararam-se com uma cena que se lhe cravaria na memória. Januária, envolta pela luz dourada da tarde, banhava-se nas águas claras, despida de qualquer veste, como uma ninfa saída das lendas antigas.
Seu corpo, moldado com graça e firmeza, resplandecia sob o sol, e as águas refletiam-lhe os contornos com brilho encantado. Nadava com leveza, ora de costas, ora de peito, num vaivém quase hipnótico. Ao sair do rio, caminhando em direção à margem, as gotas d’água em sua pele morena cintilavam como pérolas.
Corisco, assombrado e fascinado pela visão, recuou. Sentia-se intruso naquele instante sagrado. Constrangido, esporeou o cavalo e afastou-se com rapidez. Januária, embora assustada no primeiro momento, logo sorriu ao reconhecer o patrão. Não parecia vexada, talvez até cônscia do poder silencioso que seu corpo exercia, mas sem traço de culpa.
***
Ao voltar à casa-grande, Corisco entregou Relâmpago aos cuidados de um moço de estrebaria e recolheu-se ao escritório. Trancou a porta, como quem desejasse isolar-se não só do mundo, mas das imagens que lhe povoavam a mente. Sentou-se na poltrona outrora usada pelo pai, e, buscando refúgio na rotina, pôs-se a examinar as correspondências acumuladas.
Uma delas, destacada entre as demais, trazia o selo do advogado da família. Abriu-a com o abridor de prata que pertencia ao velho Justino. Leu com atenção:
“Prezado Senhor Plínio Rufino Filho,
Rogo que vossa estada na capital tenha produzido efeitos benfazejos no tratamento de vosso genitor. Contudo, informo, com pesar, que o Dr. Ladislau notificou-me sobre o agravamento de seu estado mental. Em virtude do testamento lavrado em tempos de sanidade, e conforme desejo manifestado pelo vosso pai, é vosso dever assumir a curadoria dos negócios da Fazenda Barro Preto e demais bens. Rogo que venhais ao meu escritório para tratarmos dos trâmites legais.”
Com toda consideração,
Dr. Menelau Alcântara.
Corisco pousou a carta com lentidão. A responsabilidade que lhe rondava há tempos agora caía sobre seus ombros com peso definitivo.
***
Às dezenove horas em ponto, foi-lhe servido o jantar: carne suína em molho espesso, angu de milho branco e refogado de taioba tenra. Após a ceia, veio a sobremesa: compota de figos com creme fresco. À mesa, apenas a presença discreta do mordomo e de Januária, cuja graça natural parecia carregar uma curiosidade velada.
Durante a sobremesa, sentiu o olhar dela pousar-lhe com timidez e interrogação. Pensaria ela na cena do rio? Cogitaria se fora observada? Ou guardaria aquele instante como um segredo sagrado?
Findo o jantar, Corisco recolheu-se à sala de visitas. Sentou-se na poltrona que fora do pai, o austero Justino, e, como que num rito de iniciação, dirigiu-se à cristaleira, serviu-se de meia taça de vinho do Porto e aspirou-lhe o aroma. A bebida, rubra e espessa, exalava perfumes de madeira e fruta madura.
Provou-a. Sorriu. E pensou: “Meu pai não estava enganado. Há nisso algo de legado e de consolo.”
Sentado ali, entre sombras e lembranças, entregou-se ao vinho com entusiasmo inexperiente. A garrafa, antes cheia, agora encontrava-se vazia. Seus pensamentos tornaram-se turvos, e a taça parecia-lhe extensão da mão.
Ao longe, Demétrius observava com preocupação. O velho servo sabia que aquele vinho era potente, e que o jovem patrão ainda desconhecia os limites do prazer vínico.
Com a discrição que lhe era peculiar, aproximou-se.
— Senhor Plínio — disse com deferência —, talvez fosse prudente recolher-se. O vinho, por mais nobre que seja, cobra seu tributo ao amanhecer.
Corisco sorriu, meio ébrio:
— Ah, Demétrius... que néctar é este! Não admira que o velho tanto o estimasse!
— Sim, senhor. Mas mesmo os deuses sabem quando cessar o vinho. Permita-me conduzi-lo.
Com a brandura de um pai, Demétrius levou o jovem até os aposentos. Sabia que certas lições não se dizem — sentem-se ao alvorecer.
"P.S.: Se você ainda não leu o capítulo 11 da série de contos Entre a Vida e a Morte, corre lá conferir! Quem já leu garante: está imperdível!"