Corisco — nome pelo qual era conhecido no sertão, embora na pia batismal houvesse recebido o nome de Plínio — apeou do alpendre com destreza serena, montou o cavalo e tomou a vereda que conduzia à rua principal da vila. Ao dobrar a praça central, deteve-se por um instante, deixando-se ficar em muda contemplação das crianças que, alheias ao fado do mundo, entregavam-se às inocentes folguedas da infância.
Seus pensamentos, como folha ao vento, vogaram para os dias idos — quando, aos cinco anos de idade, viera pela primeira vez ao arraial, na companhia do pai e de alguns camaradas das lavouras vizinhas. Era noite de núpcias na casa de um velho amigo da família; o luar, esplêndido em sua majestade, derramava luz argêntea sobre os caminhos e sobre os rostos enfeitados de alegria. Recordava-se de haver sido deixado junto à mesa de doces e, não resistindo ao chamado do açúcar, metera a mão, vez por outra, nas bandejas das guloseimas, como quem rouba um pedaço de céu. O pai, ao encontrá-lo, não o repreendera com severidade, mas apenas lhe advertira, com voz branda e paternal, que não se excedesse, sob pena de sofrer as agruras do ventre.
Ao termo da festividade, tomaram o caminho de regresso à fazenda, guiados pela luz alva da lua cheia que, então como agora o sol, reinava soberana no firmamento.
Àquele tempo, o arraial contava com umas poucas moradas — talvez duas centenas; dois armazéns, uma venda modesta, o botequim do senhor Vicente — e nada mais. Hoje, todavia, já se divisava a casa de quitanda de dona Estela, uma queijaria novinha e até uma pequena fábrica de farinha — sinal inequívoco de que o progresso, ainda que vagaroso, achava seus caminhos até mesmo nos confins da província.
Plínio sacudiu levemente as rédeas de Morfeu, que ia, o pobre, quase a dormir em pé. Seguiu, então, num trote manso. Por onde passava, era saudação. Às mais das vezes, limitava-se a levar a aba do chapéu aos olhos, num gesto breve, porém respeitoso. Ao passar defronte ao botequim do senhor Vicente, ouviu que alguém o chamava do interior:
— Bom-dia, Corisco! Aproxime-se, moço! Trazei-nos notícias frescas!
Plínio galgou a pequena elevação que levava ao alpendre do botequim, apeou de Morfeu e amarrou-lhe as rédeas a uma estaca de madeira rústica.
— Bom-dia, senhor Vicente — disse ele, adentrando o recinto com modos comedidos. — Como se acha vossa mercê neste dia?
— Vou indo como Deus quer... E vosso pai, como se encontra?
— Infelizmente, não vai bem, senhor Vicente. Fui forçado a interná-lo na Santa Casa, lá na Capital. Os facultativos ainda não sabem se haverá melhora.
— Que lástima... Homem tão bom! Conheço-o desde os verdes anos. Hei de rogar por sua saúde.
— Muito lhe agradeço, senhor. Rogo, porém, licença, pois preciso retirar-me. Cheguei alta noite e hospedei-me na casa do Dr. Ladislau. Contudo, cumpre-me agora visitar minha irmã Julieth, a quem desejo levar as novas do nosso pai.
— Não o detenho, cavalheiro. Ide em paz, que vossa irmã decerto anseia por vossa presença.
***
Já se iam dando as onze badaladas quando ele chegou ao sobrado da família. Conforme o costume da terra, bateu palmas à entrada, com parcimônia. Enquanto aguardava ser atendido, pôs-se a contemplar os arredores. Havia já largos meses que não punha os pés ali; e, em verdade, muito lhe pareceu diverso. O jardim mostrava-se agora mais viçoso, coalhado de flores novas. O estábulo, ampliado, denunciava mãos diligentes no trato das coisas da terra.
A porta de madeira rangeu suavemente, e surgiu no limiar uma mulher negra, esguia, envergando vestido de tom azul-escuro, guarnecido de avental alvo que lhe cobria o peito e o ventre.
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo — saudou ela, com modos respeitosos.
— Para sempre seja louvado — respondeu ele, tirando o chapéu com deferência. — Sou Plínio Rufino Filho. Desejo falar com minha irmã, dona Julieth.
— Pois não, senhor. Entre, que irei chamá-la sem demora.
A criada afastou-se apressada, murmurando entre os dentes:
— Dona Julieth! É o senhor Plínio! — e seus olhos reluziam o alívio de quem reconhece o sangue da casa.
Julieth surgiu à porta da sala, envolta em roupão leve, o rosto marcado pelas vigílias e inquietações da noite. Ao vê-lo, não conteve as lágrimas que, há dias, resistia em verter.
— Plínio, meu irmão! — exclamou, lançando-se-lhe aos braços com força. — Como está o papai? Ele ainda vive?
— Vive, sim, Julieth — respondeu ele, com voz serena, conquanto grave. — Mas seu estado é deveras delicado. Não se acha bem, minha irmã. Foi mister interná-lo na Santa Casa. Os facultativos ainda não sabem quando se dará a melhora.
Julieth levou o lenço, preso ao punho, aos olhos marejados, respirando fundo como quem busca ânimo para enfrentar o inexorável.
Plínio anuíu com a cabeça. Por instantes, quedaram-se em silêncio, ligados por laços que palavra alguma saberia traduzir.
— Parece que eu o pressentia... Ia agora pela manhã à igreja, ver dos preparativos para o almoço dominical dos pobres — obra de caridade que, em vida, tanto alegrava o coração de nossa saudosa mãe. Agora que ela se foi, tomei sobre mim essa incumbência.
— Fizeste bem, minha Julieth. Onde quer que repouse sua alma, creio que nossa mãe há de rejubilar-se por tua dedicação.
Julieth deixou escapar um soluço breve, contido.
— Sei que sim — disse ela, com voz embargada — mas deixemos, por ora, as más novas. Conta-me da Capital. É mesmo tão grande como dizem?
— É, sim. Não a percorri por inteiro, mas julgo que seja cem vezes maior que nosso pobre arraial.
— Ora, meu irmão... Verdade seja dita: qualquer cidade há de ser maior que Pacas.
— Bem pode ser...
— Mudando de assunto: já se aproxima a hora do almoço. Queres ficar e comer conosco?
— Não, minha irmã. Vim apenas trazer-te as novas do pai. Agora preciso seguir para a fazenda. Já se vão mais de sessenta dias que deixei aquelas terras.
Julieth desviou o olhar, como quem diz, sem dizê-lo: “Vai depressa, que lá as coisas não andam bem.” Sentia-se, no ar, o prenúncio de nuvens pesadas.
— Aconteceu algo em minha ausência?
— Se sucedeu, ignoro. Mas anda um disse-me-disse a boca pequena — disse Julieth — mas não te apoquentes... Conheço-te bastante para saber que saberás dar conta do que vier.
— Assim espero, minha irmã. Sendo assim, melhor é que eu me ponha a caminho.
E, dizendo isto, abraçaram-se com a ternura dos que se conhecem desde o berço — e cujos corações, por mais distantes que estejam, batem sempre em uníssono.
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