QUANDO TODOS se encontravam no recolhimento de seus lares, presenciou-se o firmamento exteriorizando um lamento, imbuindo o vale com uma atmosfera funérea. O astro solar, eclipsado por densas nuvens, cedeu espaço a uma tempestade formidável, cuja presença se anunciou por trovões retumbantes.
Plínio Rufino Filho, cognominado Corisco, meditava sobre a tempestade ao degustar meticulosamente a cachaça envelhecida em barrica de imburana, produzida fazenda, toda como a melhor da região, por todos que a consumia.
A angústia decorrente da perda materna o levou à contemplação, vislumbrando, por um breve instante, a possibilidade de sua genitora estar sendo tocada pela chuva, imersa em um frio fictício.
Desconcertado por tal pensamento, ele recolocou o cálice na mesa de centro, dirigindo-se à janela na tentativa vã de avistar o cemitério, nova morada de sua amada progenitora.
Contemplando a chuva torrencial sobre o vale, Plínio Rufino Filho, conhecido como Corisco, testemunhou as palmeiras à entrada vergando sob a força dos ventos impetuosos. A tempestade, com sua opacidade, vedava qualquer vislumbre além das palmeiras.
O crepúsculo se estabelecia, a chuva diminuía, e o mordomo, Denetrius, anunciava a iminência do jantar. Ante o silêncio de Júnior, o servo reiterou:
- Senhor Rufino, o jantar está prestes a ser servido.
Expressando gratidão a Demétrius, o mordomo, Corisco declarou:
- Obrigado, logo me unirei aos demais.
Corisco, ao se integrar aos demais, fundia-se num cenário onde a sinfonia da natureza e as emoções entrelaçavam-se em uma dança melancólica. No entrechoque sutil dos talheres, um silêncio eloquente predominava. Todavia, destacava-se a ausência do patriarca da família, um vazio palpável que permeava a atmosfera, tornando-se tão notório quanto a própria harmonia silenciosa que se desenrolava.
***
APÓS A REFEIÇÃO noturna, Corisco dirigiu-se aos aposentos dos progenitores, constatando a ausência do genitor. Diante desse cenário, os serviçais empreenderam uma busca meticulosa pela residência, desafiando as adversidades do solo impregnado pela pluviosidade. A proposição de procurá-lo no cemitério emergiu, desencadeando uma diligente exploração equestre, liderada por Corisco e coadjuvada por seu mordomo e um serviçal.
Encontraram o patriarca prostrado na lama, junto ao sepulcro da esposa. Corisco, em aflição, o ergueu nós braços, indagando:
- Será que eu deveria perder ambos os progenitores num único dia?
Transportaram-no de volta à casa, onde o mordomo providenciou uma banheira com água quente e uma infusão de especiarias para restaurar seu corpo. Antes do banho, estimularam seu despertar com algodão embebido em álcool nas narinas. Simultaneamente, um serviçal foi despachado à cidade em busca do Dr. Ladislau.
***
O senhor Rufino se encontrava fora de si, delirando, murmurando palavras desconexas. Os criados andavam assanhados, num vai-e-vem aflito, buscando qualquer recurso que pudesse aliviar o padecimento do patrão. Uma das moças da cozinha, com olhos arregalados e mãos trêmulas, sussurrou à cozinheira-mor:
— Sinhá Romualda... o senhor Rufino tá sofrendo de um jeito que parte o coração. Com essa chuvarada, as estradas hão de estar intransitáveis, um lamaçal só. O doutor não chega hoje nem com reza braba. Por que a senhora não fala com o moço Bento? Quem sabe ele consente em chamar a vó Xica, lá da vila? Aquela negra velha entende de raiz, folha e chá como ninguém. Na banda de lá, nunca precisaram de doutor pra sarar as dores... a vó Xica sempre deu conta.
— Ora, cala a boca com essa ideia torta, menina! Imaginas tu que o moço Curisco vai consentir que uma preta bote as mãos no pai dele?
— Mas sinhá, o patrão tá nos estertores!
Nesse instante, o mordomo Demétrius entrou pela porta da cozinha, ensopado da chuva.
— Fervam mais água, e preparem pano limpo pras compressas. O velho ainda treme feito vara verde... Não sei se escapa desta.
— Seu Demétrius! — disse Miúda, com coragem súbita.
— Sossega, criatura! — cortou Romualda.
— Deixa a pequena falar — disse o mordomo.
— Eu só penso que... com esse tempo fechado, o doutor não vem. E se fosse mandado buscar a vó Xica? Ela tem saber antigo, conhece remédio da terra. Talvez possa ajudar o senhor.
Demétrius levantou os olhos ao teto enfumaçado da cozinha, coçou a barba rala e olhou para os lados em silêncio. Por fim, falou:
— Toda mão que traz socorro é bem-vinda. O que não podemos é enterrar dois homens desta casa no mesmo dia. Vou tratar de falar com o moço Curisco. Se ele der o consentimento... mandamos buscar a velha.
***
Vó Xica chegou à casa-grande já avançada a hora — passava das dez da noite. A chuva, embora agora mais branda, tornava penoso o trânsito pelas estradas de barro. A anciã vinha envolta numa capa de lã de carneiro Lander, toda ensopada pela intempérie.
— Permita-me auxiliá-la, Vó Xica — disse Miúda, diligente, já a retirar a pesada indumentária dos ombros curvados da velha.
Mal adentrou, a velha Xica começou a dar ordens com firmeza:
— Lance essas ervas na panela com um punhado de sal — disse ela, estendendo a mão encarquilhada na direção da cozinheira-mó. — Hei de preparar um banho quente pro Inho. Suspeito ser apenas uma gripe das mais renitentes. Posso ver o Inho Rufino?
— Creio que o jovem senhor Rufino Filho não se oporá, - Disse o mordomo Demétrius -pois, foi ele mesmo quem autorizou sua vinda. Acompanhe-me, por obséquio.
Raro era ver os trabalhadores da lavoura — salvo os criados da casa — ultrapassarem os umbrais da casa-grande. Não por desdém dos senhores, que desde os tempos anteriores à Abolição tratavam seus negros com certa consideração, ainda que sempre com distância. Era antes a hierarquia que impunha tal separação: apenas os criados internos tinham livre trânsito pelo interior do solar. Xica, velha como a própria terra, contava já oitenta anos de serviços prestados à fazenda Barro Preto, e jamais cruzara o terreiro em direção à casa senhorial. Por onde passava agora, lançava discretos olhares, absorvendo cada detalhe do interior com curiosidade muda.
Chegados à porta do aposento do velho Rufino, foi Demétrius quem bateu com a devida cortesia, girando em seguida a maçaneta para franquear passagem à anciã.
Dentro, três serviçais diligenciavam em aplicar compressas de água quente à testa e aos pés do enfermo. À cabeceira, Plínio Filho, de semblante sombrio, velava o pai com os olhos pesados de preocupação e ternura silenciosa.
Xica acercou-se do leito. Contemplou por um instante o rosto febril do patriarca e murmurou com voz grave:
— Humm... está mal, sim. Mas o mal não é do corpo, é da alma. Trouxe ervas boas pra um banho... a febre há de ceder. Mas a cabeça... essa só Deus poderá remediar.
A velha pousou a mão calosa sobre a testa do senhor, como se em prece silenciosa. Depois, sem dizer mais palavra, retirou-se.
No delírio, o enfermo apenas balbuciava o nome da esposa.
"P.S.: Se você ainda não leu o segundo capítulo do conto Entre a Vida e a Morte? Vá la e confira agora mesmo! Para que você não perca o raciocínio."