Correu célere pelo vale a triste nova do passamento de D. Isabel. Ainda mal rompia a manhã, já acorriam à casa-grande missivas de condolências, trazidas por criados das propriedades contíguas. Vinham arranjos de flores, cartões manuscritos, e presentes os mais diversos. Demétrio, mordomo da casa, via-se aturdido, sem saber onde acomodar tantas oferendas — algumas, a seu juízo, de gosto duvidoso e pouco condizentes com o luto, como licorosos em jarros vistosos e especiarias exóticas. Contudo, cabia-lhe aceitá-las com a compostura devida, em nome dos senhores.
Não tardaram a chegar os parentes, ansiosos por confirmar, com os próprios olhos, se era veraz a notícia que pelos ares se espalhava.
A fazenda Barro Preto mergulhara em luto. Todavia, as lides não podiam cessar por completo. Era aquela propriedade responsável por quase oitenta por cento dos gêneros que abasteciam a vila, e o que sobrava era remetido à capital por diligência regular. O sustento maior vinha da produção de rapaduras, grãos em variedade, leite e seus derivados. Naquele dia, suspenderam-se os labores de plantio e de colheita; apenas a ordenha das vacas e a feitura dos queijos não se interromperam, por necessidade premente.
O sol já ia alto no céu quando se avistava, nos semblantes dos presentes, o peso da dor que pairava sobre a casa. Plínio pai e Plínio filho achavam-se inconsoláveis. Não pregaram olho durante toda a noite, e nem mesmo os criados lograram repouso. Dona Isabel, senhora da casa, era estimada por todos, e sua partida lançou sombra espessa sobre a alma de quantos com ela conviviam.
Naquela manhã, até os passarinhos pareceram respeitar o luto: não se ouviu a algazarra costumeira com que saudavam o alvorecer. E, se algum trinou, fê-lo em tal silêncio que passou despercebido. A tristeza era tamanha nos arredores da fazenda Barro Preto que nem mesmo a cachorrada ousava latir quando lacaios ou parentes aportavam à porteira. Tudo parecia envolto num véu de silêncio reverente, como se até a natureza chorasse a perda da matriarca.
***
A Fazenda Barro Preto transfigurava-se em palco de vasta congregação, acolhendo o extenso tronco familiar, que, na região, ascendia a duzentas almas. Somando-se os amigos, a reunião ultrapassava três centenas de indivíduos, conferindo à propriedade uma efervescência singular. Os serviçais, em incessante labor, moviam-se como formigas em desvairado formigueiro, tangidos pelo ímpeto do dever e do respeito à ilustre matriarca.
A matança de suínos, aves e bovinos era farta, e nas cozinhas, o borbulhar de caldeirões e a febril atividade dos cozinheiros não permitiam sequer breves repousos. Porém, ninguém se furtava ao árduo empenho, pois todo esforço era consagrado à memória de D. Isabel, cuja bondade e deferência para com os humildes tornavam-na merecedora de tais honras.
Na capela da propriedade, seu corpo jazia sobre um leito de pedra, velado por um véu negro, enquanto artífices diligentes ultimavam a confecção do féretro. Ao seu lado, o Sr. Plínio permanecia imóvel, qual estátua de dor esculpida pela viuvez precoce. As súplicas dos parentes para que comesse ou repousasse esbarravam em sua apatia insondável.
E como não seria assim? Os auges de sua existência confundiam-se com os dias vividos ao lado de Isabel. Criados juntos desde a meninice, cresceram entre risos infantis, entrelaçados por destino há muito selado pelos pais. O casamento cumprira a profecia familiar, e agora, a viuvez inscrevia-se em seu peito como ferrete de ferro em brasa.
Quando, enfim, o ataúde foi concluído, chegou às mãos da família por intermédio de quatro jovens funcionários da Casa Funerária “Féretro — Descanse em Paz”, os quais, com esmero e reverência, cuidaram de depositar D. Isabel em seu derradeiro leito. Em conformidade com sua crença, o ofício fúnebre caberia a um ministro presbiteriano, que, segundo os ritos de sua fé, haveria de proferir a última despedida da falecida.
***
Uma solene assembleia formou-se defronte à capela, onde um púlpito fora erigido, pois o modesto recinto sacro não comportava a multidão de presentes. O féretro, estrategicamente disposto à entrada, repousava em frente ao púlpito, onde, por fim, subiu o ministro da fé.
Era este um homem de porte imponente, aparentando cinquenta invernos, barba escanhoada com esmero e longas madeixas que lhe roçavam os ombros. Ao tomar a palavra, sua voz ressoou firme e grave, tal qual era esperado de um homem do púlpito.
— Caros irmãos e amigos, aqui nos congregamos nesta tarde, sob o pesar do luto, para rendermos nossas derradeiras homenagens à estimada irmã Isabel.
Com gestos comedidos e solenes, abriu o volumoso livro sagrado que trazia consigo e depositou-o sobre a tribuna.
— As Escrituras nos recordam que não fomos criados para a mortalidade... Em Eclesiastes 3:11, lemos que ‘Deus pôs até mesmo o tempo indefinido no coração do homem’. Contudo, pela transgressão de nossos primeiros pais, Adão e Eva, fomos lançados à decrepitude, à enfermidade e, enfim, à morte.
Seguiu-se um sermão eloquente, no qual o ministro discorreu sobre os mistérios da vida cristã e sobre as virtudes da falecida. Destacou-lhe o coração generoso, a devoção à família, a caridade praticada nos asilos e orfanatos da região. As palavras de louvor e reminiscência foram entremeadas de silêncios carregados, nos quais se percebia a contenção do pranto em muitos semblantes. Por fim, elevando os olhos ao céu, prosseguiu:
— Como muitos dos aqui presentes bem sabem, nossa irmã Isabel nutria grande afeição pela poesia. Em sua memória, recitarei versos de Camões, que tanto apreciava:
“Muda-se os tempos, muda-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades...”
Ao findar os versos, o ministro teceu reflexões sobre a transitoriedade da vida, e com um suspiro quase inaudível, encerrou:
— Nossa irmã Isabel transpôs os umbrais desta existência e agora descansa em prados verdejantes, sob os cuidados do Senhor. Mas a nós, que ficamos, caberá o fardo de seguir sem sua brandura e sem o calor de sua presença. Dona Isabel, como era chamada por tantos, deixa filhos desolados e um esposo enlutado. Que Deus lhe conceda o descanso eterno.
Feita a oração final, convocou-se os familiares e amigos a acompanharem o cortejo fúnebre até o cemitério, onde a falecida haveria de ser depositada em sua derradeira morada.
Então, ladeando o esquife, postaram-se o filho, o genro e os amigos mais próximos, e com passos lentos e compassados, iniciaram a jornada ao local do sepultamento.
Nos domínios do sepulcro familiar, erguido sobre o sopé da colina a leste da residência e a duzentos metros do vale, desenrolou-se o ato final da despedida. Sob o olhar grave dos presentes, o féretro foi baixado à terra, enquanto punhados de solo eram lançados simbolicamente à cova.
A Plínio, esposo inlutado, contudo, faltavam forças para tal gesto. Imóvel e absorto, quedou-se a contemplar os serviçais selarem o jazigo. E mesmo quando os enlutados, um a um, dispersaram-se, ele permaneceu só, resignado ante o montículo de terra fresca, envolto em sombras e reflexões que o silêncio da morte se incumbia de guardar.
Ps.: se você ainda não leu o primeiro capítulo do conto ENTRE A VIDA E A MORTE, vá lá agora mesmo e conferira...