FelipeFFalcão

Contos versos e poesias

Textos


19
 
Sentindo uma grande dor lhe invadir a alma, Fernandes apoiou a cabeça sobre as mãos que estavam no volante e chorou feito criança.
 
Ele já havia levado muitos golpes da vida. Já enterrara um amigo de infância morto em grave acidente de trânsito; o pai havia morrido de infarto fulminante e, apenas dois meses depois, sua mãe morrera também deprimida demais após o falecimento do companheiro de tantos anos.
 
Fernandes era agora órfão e viúvo. Mas apesar do seu coração estar apertado pela dor daquela perda, Fernandes tinha consciência de que precisava ser forte já que tinha muita coisa para ser feita em termos de preparativos para o velório.
 
Ele secou os olhos, pegou o telefone móvel que ficava próximo a alavanca do câmbio de marcha e ligou para a casa de sua secretária. Quem atendeu foi o pai dela.
 
- Alo! Alfredo falando.
 
- Boa noite, Sr. Alfredo. Eu sou Dr. Fernandes, a Nayára já chegou?
 
- Sim ela acabou de subir para o quarto, mas vou chamá-la.
 
Momentos depois, ela atendeu.
 
- Boa noite, Dr. Fernandes! Aconteceu alguma coisa?
 
- Infelizmente, sim; Weruska se envolveu em um grave acidente de trânsito e veio a falecer agora pouco devido aos ferimentos.
 
- Meu Deus, que coisa horrível doutor, meus pêsames! Eu posso ajudar em alguma coisa, doutor?
 
- Sim, por isto liguei para sua casa, eu preciso que você me faça um grande favor! Ligue para todos os nossos amigos, para os meus parentes e de Weruska e tente agendar os clientes de amanhã somente para a semana que vem. Eu pagarei a conta do seu telefone, Nayára.
 
- Não se preocupe e pode deixar doutor, que já vou fazer isso agora mesmo. O senhor já sabe onde será o enterro e qual será o horário?
 
- O enterro será no Cemitério da Consolação, no túmulo de minha família. O horário eu ainda não tenho, mas, assim que souber, ligo novamente. Obrigada, Nayára.
 
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Marilyn chegou ao apartamento e percebeu que David havia estado ali, mas já tinha saído. Foi para cozinha, verificar o que havia para comer. Antes de destampar as panelas para ver o que a cozinheira preparara para seu jantar, ela ligou a televisão querendo saber das notícias do dia e, também da novela que acompanhava vez ou outra.
 
Enquanto abria a geladeira para pegar uma jarra de suco, o repórter contando os acontecimentos do dia, disse:
 
A chuva de hoje, além de deixar o trânsito lento com 22 km de congestionamento em toda a grande São Paulo, provocou também um acidente fatal:
 
No início da noite, no cruzamento da Av. Celso Garcia com a Av. Salim Farah Maluf, um caminhão avançou o farol vermelho batendo violentamente numa Blazer. Desgovernado, o veículo capotou três vezes deixando o motorista gravemente ferido e provocou ainda um engavetamento. A motorista da Blazer foi identificada como Weruska Pinheiro de Godoy e, ao que tudo indica, trata-se mesmo da esposa do famoso advogado de defesa do polêmico caso de assassinato noticiado na última sexta-feira. A vítima teve um pé e três costelas quebradas, o pulmão perfurado e traumatismo craniano sendo levada para o P.S do Hospital Tatuapé. A última informação obtida é que a vítima estava sendo operada, mas não resistiu aos ferimentos e veio a óbito, infelizmente. Os demais envolvidos nesse acidente sofreram ferimentos leves e passam bem. O motorista da carreta foi levado preso, pois, de acordo com os policias, ele estava sob efeito de entorpecentes e bebida alcoólica. Há um projeto de lei tramitando no congresso e, se aprovada, este tipo de acidente passará a ser crime culposo, - quando não há a intenção de matar – podendo o culpado ser processado quando o resultado for considerado negligência, imperícia ou imprudência – nestes casos, o motorista poderá pagar fiança e responder o processo em liberdade. O que provavelmente acontecerá agora é ele ter que prestar algum serviço comunitário, por exemplo: pagar algumas cestas básicas. Isto é Brasil, um país em que tudo pode acontecer... mas, queira Deus, que este tipo de coisa acabe muito em breve.”
 
Marilyn, ao discernir que se tratava da esposa de Fernando, desligou a televisão, pegou a bolsa e foi para o Hospital.
 
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Chegando ao hospital, Marilyn ficou indecisa se deveria estar ali e quis dar meia volta, mas raciocinou que poderia ser útil em alguma coisa.
 
Seguindo pela rampa que levava à recepção, ela pode ver pessoas saindo com perna engessada e outras sendo empurrados em cadeiras de rodas. Ela pensou que, definitivamente, aquele não era o tipo de hospital que estava acostumada a frequentar.
 
Na recepção, ela logo viu Fernandes sentado nas últimas cadeiras com a cabeça recostada na parede e meio, sem graça ainda, foi andando até ele.
 
Três horas depois de haver recebido a triste notícia, Fernandes ainda estava naquela sala de espera e, embora sua cabeça estivesse a mil, o cansaço da espera falou mais alto e ele adormecera ali mesmo.
 
Marilyn tocou-lhe o ombro, mas ele não esboçou nenhuma reação.
 
- Fernandes! – disse ela com voz amena para não chamar atenção dos ali presentes. Fernandes! - insistiu.
 
Ele abriu os olhos e pareceu surpreso ao vê-la ali.
 
- Eu soube agora pouco do acontecido pela televisão – disse ela – e vim ver se posso ser útil a você em alguma coisa.
 
Fernandes nada disse apenas se levantou e a abraçou.
 
- Obrigado por ter vindo – disse ele com a cabeça pousada sobre o ombro direito de Marilyn – David não veio com você?
 
- Não... eu não o vejo direito faz uma semana. Hoje ele esteve em casa, mas eu não estava.
 
- Entendo, vamos nos sentar – disse Fernandes se desvencilhando dos braços de Marilyn.
 
Ambos ficaram ali, calados e constrangidos. Quando o corpo foi finalmente liberado já passava dá uma hora da manhã e Marilyn acompanhou Fernandes até a funerária para a escolha do caixão. Após a difícil tarefa de escolher a urna fúnebre de sua adorável esposa e encomendar as mais lindas flores, Fernandes ligou para Nayára avisando o local do velório e o horário do enterro. Depois levou Marilyn de volta ao carro dela e se despediram como bons amigos, cada um indo para sua própria casa. 
 
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Aquela terça-feira amanhecera sombria e o clima na Igreja da Fé em Cristo estava mais sóbrio agora do que em dias normais e mais alegres. O auditório, que tinha capacidade para quinhentas pessoas, estava lotado e as cadeiras em frente ao púlpito foram reservadas para os parentes e amigos mais próximos. Elas, as confortáveis cadeiras, eram de madeira trabalhada, estofadas em vime cor verdes nos assentos, encostos e apoios de braços. O altar era de mármore bege contornado por metal dourado nos cantos – havia os que asseguravam que o acabamento era de ouro mesmo, mas aquilo era somente uma mera especulação. 
 
Fernandes estava ali ao lado da urna fúnebre de sua falecida esposa desde que o serviço funerário trouxera o corpo às quatro horas da manhã. Naquele momento, o que mais o martirizava era o fato de haver sido tão infiel a ela e justamente quando ele decidira se dedicar apenas a ela e aos filhos, acontecia aquela tragédia. O remorso era tardio e inútil, pois agora era tarde e ela estava saindo de sua vida para sempre.
 
O enterro estava marcado para as onze horas e todos os amigos da família estavam presentes, até mesmo David, que vivia viajando, estava ali para prestar suas condolências e Marilyn, visivelmente abatida, estava ao seu lado.
 
 Depois de tanto tempo sentado próximo à cabeceira do caixão, Fernandes levantou-se e olhou o caixão como quem verifica um objeto à procura de possíveis defeitos e, por fim, passou a mão sobre a testa fria de Weruska. Enquanto assim contemplava o rosto da esposa, ele sentiu uma mão pousar suavemente sobre o ombro e era a sua sogra.
 
- Mesmo com o inchaço devido ao acidente – disse Ivone – ela continua linda, não é, meu filho?
 
- Sim, Dona Ivone, parece até que ela está sorrindo.
 
Ivone enxugou as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto e genro e sogra se abraçaram em comunhão de dor.
 
- Sei que vocês se amavam muito, meu filho, mas agora você precisará ser ainda mais forte, pois do amor de vocês ficaram dois filhos lindos que irão precisar de você mais do que nunca.
 
Enquanto Ivone ainda estava abraçada ao genro, Kássia entrou na igreja trazendo Júnior pela mão e Laura no braço.
 
- E esses filhos acabaram de chegar, veja.
 
- Cadê eles? - disse Ivone, olhando para a entrada do velório – Ah! Mas aqui não é um lugar para crianças, Fernandes!
 
- Fui eu que mandei trazê-los, Dona Ivone, quero os meus filhos ao meu lado neste momento de dor.
 
- Eu entendo sim, só que não aprovo.
 
- Como a senhora mesmo disse, eu preciso ser forte, mas sem eles eu não conseguirei. Não tenho mais nada, meus pais já se foram e agora Weruska. Tudo o que me resta são os meus filhos.
 
- Acalme-se, filho, você tem a mim e ao Genaro, nós ainda somos a sua família e você poderá sempre contar conosco.
 
- Eu sei que sempre poderei contar com vocês. Quando digo que não tenho ninguém é só força de expressão.
 
Fernandes beijou a sogra no rosto e foi tirar Laura das mãos da babá.
 
- Obrigado, Kássia, você não trouxe o carrinho dela?
 
- Ele está no porta malas da Van, mas o Junior estava tão impaciente que achei melhor primeiro trazê-lo para o senhor.
 
Quando a babá voltou com o carinho, o pastor Claudio já se dirigia ao púlpito para a cerimônia de despedida de Weruska. Kássia pegou Laura dos braços do pai novamente para colocá-la no carrinho.
 
- Queridos irmãos e amigos aqui presentes – começou o pastor – nessa data solene estamos reunidos para nos despedir de nossa querida irmã Dra. Weruska Godoy. Eu preparei algumas palavras para esta ocasião e quero compartilhar com todos vocês.
 
O pastor, visivelmente consternado, manuseou as páginas dispostas sobre a tribuna, respirou fundo e começou a falar:
 
- A nossa irmã faleceu ontem à noite decorrente de um grave acidente automobilístico, deixando enlutados, pai, mãe, esposo, filhos e muitos amigos. Ela foi uma esposa e mãe exemplar. Uma mulher de fibra e de muita fé. Sempre priorizou o bem-estar do próximo. Atualmente estava engajada em um projeto de construção de uma clínica pediátrica para atender a todo tipo de público: pagantes e não pagantes e seu desejo era levar um pouco mais de cuidados aos mais carentes.
 
Caros amigos e familiares, é muito triste ter que nos despedir de um ente querido, mas é importante sabermos que ela foi descansar. A palavra de Deus nos garante isso. Um sábio rei da antiguidade, o Rei Salomão, foi inspirado por Deus a escrever as seguintes palavras em Eclesiastes capítulo 9 versículos 5 e 10:
 
“Pois os viventes estão cônscios de que morrerão; os mortos, porém, não estão cônscios de absolutamente nada, nem têm mais salário, porque a recordação deles foi esquecida... Tudo o que a tua mão achar para fazer, faze-o com o próprio poder que tens, pois não há trabalho, nem planejamento, nem conhecimento, nem sabedoria na sepultura.”
 
Isso quer dizer que a nossa irmã está dormindo no sono da morte, mas que nós a veremos outra vez. Foi isso que nosso Senhor Jesus disse aos discípulos, quando soube que seu amigo Lázaro havia morrido. Ele disse: “Mas eu viajo para lá, para despertá-lo do sono”. Foi o que Jesus fez, pois Ele trouxe Lázaro de volta à vida. 
 
A nossa vida é como um livro na mão de Deus, tudo que fazemos durante a vida Ele anota e, quando morremos, o Criador fecha esse livro e todas as nossas atividades são encerradas, nada mais é apontado ali, pois não temos mais atividades.
 
O orador acendeu a vela de um pequeno velador que já estava sobre a mesa do palco e, em seguida, ergueu-a para que os presentes pudessem ver. Então, prosseguiu.
 
- Imagine que a vida seja esta vela acesa, se eu apagar esta chama, a vela parará de derreter, assim a nossa vida é como uma chama: quando morremos, a chama da vida se apaga, mas Deus nos trará de volta à vida. Portanto, se hoje podemos estar chorando por essa partida, em breve estaremos felizes por recebê-la de volta na ressurreição. Agora eu convido o Dr. Alisson para dizer algumas palavras.
 
O Dr. Alisson foi ao púlpito e ele levava uma rosa e um rolo nas mãos com a aparência de um pergaminho. Ele estava visivelmente abalado, as mãos suando muito, mas respirou fundo e começou a dizer:
 
- Eu poderia dizer muita coisa sobre Dra. Weruska pois, como o pastor já disse, ela foi uma mulher de fibra e de fé, dona de variadas virtudes e habilidades... e, além de ser uma exímia pianista, também era uma grande poetisa, tendo publicado dois livros nesse gênero.
 
A voz de Alisson embargou.
 
- Sem palavras que possam exprimir a grandeza desta mulher, peço licença para recitar um poema que li no último livro que ela lançou cujo título é:
 
Todos os seres
 
Todos os seres vivem em busca do inalcançável.
Todos querem ser felizes consigo mesmos.
Todos sonham em encontrar o verdadeiro amor,
Alguém que os faça feliz de maneira plena...
 
Nesta corrida frenética, nesta busca inconstante,
Esquecem que têm consigo mesmos tudo o que precisam...
Vida, saúde, uma família que os ama e, por ela, é amado.
Que os recebem sempre de braços abertos a cada retornar.
 
Família é o maior tesouro que alguém pode ter.
Preze e faça a sua feliz,
Viva a cada dia como se fosse o último,
Pois, desta vida, só levamos as recordações que deixamos.
 
Por isso viva! Sonhe! Ame e seja feliz!
Contribua para a felicidade dos que o cercam,
Deixe de ansiar o impossível,
Faça a vida valer apenas sempre...
Antes que a janela da vida se feche para você.
 
Essa é a forma mais bonita que encontrei para dizer adeus a esta grande amiga!
 
Quando Alisson acabou de falar e desceu para depositar a rosa sobre as mãos da falecida, Ivone, Genaro, Fernandes e muitos dos presentes estavam chorando abertamente. Tendo acabado a cerimônia, os funcionários da funerária fecharam o ataúde. Fernandes e Genaro pegaram as primeiras alças e outros amigos pegaram as demais alças, todos se dirigindo para a entrada da igreja e colocando a urna no carro fúnebre que seguiria para o cemitério. Já passava das onze horas quando chegaram ao cemitério e o corpo foi depositado na gaveta. Quando os funcionários começaram a fechar a parede, os que acompanharam o cortejo foram se dispersando, mas Fernandes, os familiares e os amigos mais chegados ficaram no local até que os funcionários anexaram uma placa de metal dourado com os seguintes dizeres:
 
EM MEMÓRIA DA
    DRA. WERUSKA PINHEIRO DE GODOY
MUI AMADA ESPOSA
MÃE DE FERNANDES DE GODOY JR
E LAURA PINHEIRO DE GODOY
ESCRITORA E POETISA SENSÍVEL
PEDIATRA BRILHANTE
- UMA PROFISSIONAL IDEALISTA          
  AMANTE DO PRÓXIMO E DA VIDA.
SUA BELEZA E SIMPLICIDADE
FICARÃO PARA SEMPRE
EM NOSSAS MEMÓRIAS
 
 
Fernandes observou as várias coroas que os amigos enviaram serem posta à frente do mausoléu e não pode conter a emoção, as lágrimas corriam livremente sobre sua face agora e seus lábios tremiam. Ivone e Genaro o abraçaram.
 
- Ela está apenas dormindo, mas, num futuro próximo, nós a veremos outra vez.
 
Fernandes nada disse, apenas ficou ali a olhar para o túmulo e, minutos depois, dirigiu-se a seu carro ainda tendo os sogros abraçados a ele.
 
 
 
Felipe Felix
Enviado por Felipe Felix em 06/05/2019
Alterado em 13/05/2019
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